Introdução
A educação brasileira, a partir do ano de 96, vem sendo considerada segundo novas regulamentações legais. No período de 95 a 98, o Ministério da Educação e Desportos elaborou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que, vinculados à Nova LDB – 9.394, visam estabelecer diretrizes para o currículo do ensino fundamental (1ª a 8ª série) e servir como referência nacional, seja para a prática educacional, seja para as ações políticas no âmbito da educação.
“Por sua natureza aberta, [os Parâmetros Curriculares Nacionais] configuram uma proposta flexível, a ser concretizada nas decisões regionais e locais sobre currículos e programas de transformação da realidade educacional empreendidos pelas autoridades governamentais, pelas escolas e pelos professores. Não configuram, portanto, um modelo curricular homogêneo e impositivo...” (Brasil,1997a, p.13)
Os conteúdos a serem ensinados estão dispostos em dois grupos. Primeiramente, o das áreas de conhecimento, que são: Língua Portuguesa, História, Geografia, Matemática, Ciências Naturais, Arte , Educação Física e Língua Estrangeira. Compondo o segundo grupo estão os conteúdos organizados em “temas transversais”: ética, educação ambiental, orientação sexual, pluralidade cultural e saúde. O conteúdo “Trabalho, consumo e cidadania” está em vias de ser inserido.
Os “temas transversais” dizem respeito a conteúdos de caráter social, que devem ser incluídos no currículo do ensino fundamental, de forma “transversal”, ou seja: não como uma área de conhecimento específica, mas como conteúdo a ser ministrado no interior das várias áreas estabelecidas.
Mesmo que um determinado tema possa ser mais pertinente a uma área do que a outra, o fator decisivo do seu grau de inserção em dada área de conhecimento, poderá depender, pelo menos inicialmente, da afinidade e preparação que o professor tenha em relação ao mesmo.
Os conteúdos propostos para integrar o currículo são organizados em forma de documentos, sendo um volume introdutório, um volume para cada área e outros três volumes para os vários “temas transversais”. Cada professor deve receber, gratuitamente, do MEC, seu material para estudo.
Embora a elaboração dos Parâmetros tenha se dado mais acentuadamente no biênio 95 e 96, um período posterior de dois anos se fez necessário para avaliação de versões preliminares, publicação e distribuição das versões finais.
É possível crer que no ano de 99 e 2.000 poderão ser iniciados os primeiros passos da materialização dos PCNs, quando todos os professores já terão recebido os textos referentes ao ensino fundamental e começado um processo de estudos sistemáticos sobre os mesmos.
Na cidade de Londrina (Pr) -- realidade que acompanhamos de perto -- as Escolas Municipais receberam os documentos referentes aos PCNs da 1ª a 4ª série (caixa contendo 10 volumes), no 2º semestre de 98, quando, então, a Secretaria Municipal de Educação iniciou estudos e debates sobre os mesmos, com supervisores de ensino das escolas. No ano de 99, cada supervisor deverá organizar estes debates em suas escolas. Já as Escolas Estaduais, que representam a maioria do município, apesar de terem recebido os materiais na mesma época, possivelmente deverão começar seus estudos com os supervisores, a partir de abril do ano de 1999.
Este é um momento histórico muito significativo e que, portanto, requer a contribuição de estudiosos e pesquisadores para a reflexão sobre perspectivas de concretização dos PCNs, com o paralelo apontamento de estratégias limitadoras e facilitadoras desse processo.
Em especial, a análise em torno da viabilidade dos “temas transversais” requer esforços de reflexão particularmente direcionados, tendo em vista o caráter de “novidade” que em si comportam, o nível de interdisciplinariedade requerido, bem como a necessidade de preparação dos professores para desenvolverem os temas.
Trabalho docente
A reflexão sobre a viabilidade dos “temas transversais” pode ser iniciada pelas condições do professor para colocar em prática o que determinam os Parâmetros Curriculares Nacionais. Para isso, é útil considerar a contribuição apresentada por Mizukami (1998), no V Congresso Paulista sobre Formação de Educadores. Ao estudar os documentos dos Parâmetros, a autora procurou conduzir sua análise em torno da seguinte questão-chave: que competências o professor precisa ter para que os PCNs se concretizem? De acordo com as determinações e as fundamentações teóricas presentes nesses documentos, identificou oito tipos de competências que são esperadas do professor, a saber:
1. Planejador central do currículo e do ensino.
2. Ser a figura central do processo ensino-aprendizagem.
3. Avaliador do progresso do aluno e observador dos eventos da sala de aula.
4. Educador do desenvolvimento pessoal de cada aluno.
5. Ser agente do seu processo de aprendizagem e desenvolvimento profissional.
6. Conhecer profundamente as Áreas de Conhecimentos e dos “temas transversais”.
7. Educador de estudantes diversos.
8. Partícipar do projeto educativo da escola.
Ao que se percebe, portanto, é esperado que o professor seja um “super-profissional” e que tenha tido uma formação de qualidade primorosa, o que na verdade não condiz com a realidade.
A exigência de que seja um “educador de estudantes diversos” significa que o professor precisa saber lidar com os alunos de diferentes repertórios, uma vez que há diferenças sócio-culturais, emocionais e intelectuais entre eles.
Conforme apontou Mizukami, ser “profundo conhecedor das áreas de conhecimentos e dos “temas transversais” implica em que o professor tenha uma cultura geral sólida.
Será que o professor conhece, suficientemente bem, conteúdos de outras áreas além dos de sua área de formação e atuação profissional? Será que conhece, com propriedade, os temas sociais que deverá abordar “transversalmente” em sua área de conhecimento. Estará preparado para ensinar sobre ética, educação ambiental, orientação sexual, pluralidade cultural e saúde?
Sabemos que, de forma geral, não, e isto nos permite prever o quanto pode ser morosa a concretização da transversalidade.
Além dos limites impostos pela própria bagagem do professor, temos que reconhecer que seu contexto de formação e atuação profissional são desfavorecedores.
Em vários pontos do volume introdutório dos PCNs. o Ministério da Educação e do Desporto reconhece as reais condições precárias em que a escola se encontra, apontando que a concretização, com qualidade, das propostas contidas nos Parâmetros necessita de:
“... uma política educacional que contemple a formação inicial e continuada dos professores, uma decisiva revisão das condições salariais, além da organização de uma estrutura de apoio que favoreça o desenvolvimento do trabalho (acervo de livros e obras de referência, equipe técnica para supervisão, materiais didáticos, instalações adequadas para a realização do trabalho de qualidade), aspectos que, sem dúvida, implicam a valorização da atividade do professor”. (Brasil, 1997a, p.38)
Embora os fatores apontados necessitem de investimentos, quando se pensa na viabilidade dos “temas transversais”, não é suficiente o investimento nas escolas. Ou seja, não basta cuidar da formação inicial e continuada e das condições salariais e de atuação profissional, que poderiam constituir-se, isoladamente, em medidas paliativas.
Há uma questão básica, de amplitude maior, que precisa ser trabalhada urgentemente. Trata-se da necessidade de a escola pública passar a ser encarada como um local de trabalho. Como podem os professores de uma dada escola atuarem interdisciplinarmente, se não conseguem se reunir e permanecer por período significativo na escola?
O que se vê, em muitas escolas brasileiras, é um grande número de professores atuando em duas, três ou mais escolas, durante um dia ou uma semana de trabalho; isto inviabiliza investimentos em projetos político-pedagógicos e mesmo em projeto organizacional da escola.
Diz Silva Júnior (1995, p.17):
“Para que as pessoas se organizem ou sejam organizadas, é preciso, antes de mais nada, que elas se encontrem em seu cotidiano de trabalho. Sem a presença física do trabalhador individual, o ‘trabalhador coletivo’ não se constitui, mas também o projeto político não se elabora.” (destaques do autor)
No documento introdutório, em sua primeira página de apresentação dos PCNs, está a seguinte afirmação:
“Os Parâmetros Curriculares Nacionais, referenciais para a renovação e reelaboração da proposta curricular, reforçam a importância de que cada escola formule seu projeto educacional, compartilhado por toda equipe, para que a melhoria da qualidade da educação resulte da co-responsabilidade entre todos os educadores. A forma mais eficaz de elaboração e desenvolvimento de projetos educacionais envolve o debate em grupo e no local de trabalho”. (Brasil, 1997a, p.9 – destaques nosso)
Esta afirmação corrobora a necessidade de se começar a renovação do ensino pela delimitação do local de trabalho, bem como da jornada de trabalho. Isto significa que o professor pode vir a ser um profissional de uma única escola, ou de duas, no máximo, e passar nela(s) o tempo suficiente para desenvolver seu trabalho com qualidade e satisfação.
A questão da jornada de trabalho deve ser revista, pois nossa realidade mostra que um elevado número de professores cumpre jornada de 40 horas semanais em sala de aula e, muitos, até de 60.
Em um texto recente, analisando a viabilidade dos Parâmetros Curriculares, como um todo, Silva Júnior (1998, p.91) deixa claro que
“a materialização do currículo é algo que só pode se manifestar a partir dos limites de uma unidade escolar. Se a esta não são dadas condições mínimas de organização como local de trabalho e a seus trabalhadores não são asseguradas relações de trabalho compatíveis com suas necessidades pessoais e com as peculiaridades do trabalho a ser desenvolvido, de pouco adiantará chegarmos a qualquer consenso em abstrato sobre a qualidade dos PCNs e das propostas que se dispõem a aprimorá-los. Não é suficiente e nem é mais admissível o registro sumário que se costuma fazer nessas oportunidades sobre a indigência salarial e a precarização geral das condições de trabalho no magistério público. Feito o registro, parte-se para análise das questões substantivas, já que, embora importante, salário não é tudo.” (destaques do autor)
É certo, então, que as lutas pela melhoria das condições de trabalho e por melhor remuneração, precisam ser incorporadas à luta maior e primeira, pela caracterização da escola como local de trabalho. Considerar a escola pública como local de trabalho implica, também, em repensar sua forma de organização.
Segundo Silva Júnior (1995, p.21), “a escola pública é um local de trabalho que, por sua finalidade e por sua natureza peculiar, supõe critérios especiais de organização. Tais critérios devem ser estabelecidos a partir das características do trabalho que ali se desenvolve”. (destaques do autor)
Como não visa a produção de bens materiais, nem de mais-valia, o trabalho na escola não pode continuar sendo organizado de forma a manter o sistema hierárquico entre os vários profissionais da escola, tampouco o exercício do controle do trabalho alheio, típicos das relações de trabalho do sistema capitalista.
Ao contrário, por ser um trabalho que visa a educação, o domínio do saber pelos alunos, deve encontrar sua forma peculiar de organização, abolindo-se a hierarquização e o controle do trabalho do outro, para que possam ser instaurados a solidariedade e o trabalho conjunto entre professores.
Consideramos que um primeiro passo é os professores se darem conta de toda esta dinâmica que envolve a possibilidade de consolidação de sua profissão docente. Mas como, e através de que caminhos?
O caminho promissor é o caminho da melhoria da formação inicial e continuada. Porém, sozinhos, os professores, devido a suas condições de trabalho e de formação, não têm como dar início a esse processo. É aqui que entra, cremos, a atuação das Universidades.
Ao mesmo tempo que é dever do Estado, é tarefa da Universidade a formação continuada dos que atuam nas redes públicas de educação, pela oferta regular e sistemática de assessoria e cursos, pelo desenvolvimento de projetos especiais, reuniões de equipe, entre outras (Coêlho, 1996).
Giovanni (1998), entre outros, propõe a parceria colaborativa entre universidade e escolas de 1º e 2º graus, para que a formação continuada seja uma oportunidade de reconstrução da identidade profissional e pessoal.
A Universidade deve, com urgência, integrar-se com os educadores, investindo em reflexões e pesquisa-ação, aproveitando este momento histórico especial da criação dos Parâmetros.
A transversalidade e a vertigem da dispersão
Gostaríamos de abordar a transversalidade num paralelo com a questão da vertigem da dispersão, delineada por Perrenoud (1997).
De acordo com o autor, a prática pedagógica caracteriza-se por numerosos momentos de dispersão, nos quais o professor precisa realizar inúmeras e pequenas atividades ao longo do seu dia de trabalho. Necessita distribuir o seu tempo entre variadas atividades de planejamento, organização e execução do trabalho pedagógico, com o estabelecimento de prioridade entre as várias tarefas e solicitações dos alunos, pais e colegas de trabalho. Com isso, acaba por ter dificuldades em ater-se com mais delonga e dedicação em tarefas relevantes.
“... o professor vê-se freqüentemente dividido entre os seus projetos de longo prazo e a preparação do dia seguinte; cada actividade ocupá-lo-ia horas a fio se quisesse fazer as coisas a sério, até o fim, reflectindo o tempo necessário (...) O professor limita-se a ir ao essencial, com um sentimento de culpa, em numerosas actividades, por não ter podido fazer mais e melhor”. (Perrenoud, 1997, p.58)
“Alguns conseguem, sem dúvida, dentro do tempo de que dispõem, administrar, de forma clara, as prioridades, a começar pelas coisas mais importantes, só investindo nas actividades secundárias quando o essencial está assegurado. Esta organização racional, que evita ao máximo a dispersão, não é certamente adoptada por todos os professores, em parte porque o desejo de fazer coisas não depende sempre da sua importância ou urgência objectiva. Um professor que, de repente, se lembra de um jogo ou de um modelo não vai esperar necessariamente antes de passar ao acto, mesmo que esta tarefa não seja prioritária. Uma certa desordem e dispersão são, sem dúvida, inseparáveis do prazer e criatividade que existe [existem] no trabalho solitário do professor”. (Perrenoud, 1997, p.59-60 – destaques do autor)
Na profissão docente, uma certa dispersão e fragmentação são, sem dúvida, inseparáveis do prazer e criatividade que existe no trabalho inovador do professor. Segundo o autor, mesmo o professor rotineiro e/ou metódico não escapam de um certo grau de dispersão.
Nóvoa (1997), pautando-se em outros estudos, também chama atenção para o perigo da inflação de tarefas diárias e da sobrecarga permanente de atividades, tornando-se fatores que contribuem para a proletarização do trabalho docente.
Dado o exposto, é interessante o seguinte questionamento: assumindo o compromisso com a transversalidade, não aumentaria ainda mais a vertigem da dispersão?
Possivelmente sim, uma vez que o professor vai precisar despender parte de seu tempo para organizar formas de ensinar, por exemplo, educação ambiental ou pluralidade cultural dentro de uma aula de Geografia, ou de História... Além disto, os conteúdos próprios da transversalidade só serão cumpridos em sua totalidade se os vários professores de uma mesma escola reunirem-se para planejar, dividir tarefas e fazer avaliações e replanejamentos em conjunto.
Então, para ser bem cumprida, a transversalidade exige sistematização e deve implicar em maior número de reuniões ou contatos entre professores, o que pressupõe a, já abordada, delimitação da escola como local de trabalho.
Diz Perrenoud (1997, p.61) que
“todas as formas de concertação [reunião/parceria] entre professores, mesmo quando escolhidas livremente e vividas positivamente, aumentam a sensação de dispersão e de frustração na utilização do tempo. Além disso, a concertação leva o professor a sonhar e a esboçar mais projectos do que aqueles que poderão, realmente, ser concretizados”. (destaques do autor)
Assim sendo, por um lado, temos o dado de que a transversalidade pode aumentar a dispersão e a fragmentação de atividades. Por outro lado, a dispersão é um fator que pode dificultar a concretização da transversalidade. É preciso refletir sobre: em que medida e de que forma poderia a prática da transversalidade amenizar a vertigem da dispersão?
Primeiramente, é preciso levar em consideração uma hipótese defendida pelo referido autor: “a de que a dispersão não é apenas a conseqüência inelutável das condições de exercício” da profissão docente e que, “é um fator de stress, mas também um fator de excitação, logo de prazer”.(p.66)
“É ao envolver-se em ‘montes de coisas’, ao dispor, constantemente, de muitos projectos a pôr em prática, que uma pessoa sente que vive plenamente. (...) ... a dispersão, bem como o stress e a excitação que a acompanham, são uma forma de escapar à rotina e ao aborrecimento. As mesmas coisas feitas tranqüilamente, de forma ordenada, despenderiam, sem dúvida, menos energia mas seriam, ao mesmo tempo, mais banais.” (Perrenoud, 1997, p.66)
Diante disto, é possível crer que o ensino dos “temas transversais”, pelo fato de abranger temas sociais, pode ajudar a caracterizar, de uma nova forma, o processo de dispersão. Permitindo, ao professor, ampliar os horizontes da sua área de conhecimento e envolver-se com projetos variados e/ou projetos a longo prazo, pode levá-lo a obter mais prazer no ensino e a retroalimentar o significado e o sentido que atribui ao seu trabalho. No exercício da transversalidade, o professor pode sentir satisfação por ver que seu trabalho como educador tem mais chances de estar ligado à vida como um todo.
É sabido que educadores das várias áreas têm se preocupado, nas últimas décadas, com a formação integral do educando e não apenas com a transmissão dos conteúdos científicos. Com a entrada dos “temas transversais”, o trabalho em torno da formação integral parece estar mais sistematizado e parece apresentar-se de forma concreta, clara e organizada.
Segundo os PCNs, a educação deve estar comprometida com a cidadania, trabalhando, junto aos alunos, os princípios: dignidade da pessoa, igualdade de direitos, participação e co-responsabilidade pela vida social. Porém,
“... as Áreas convencionais, classicamente ministradas pela escola, como Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História e Geografia, não são suficientes para alcançar este fim.
Dizer que não são suficientes não significa absolutamente afirmar que não são necessárias. É preciso ressaltar a importância do acesso ao conhecimento socialmente acumulado pela humanidade. Porém, há outros temas diretamente relacionados com o exercício da cidadania, há questões urgentes que devem necessariamente ser tratadas, como a violência, a saúde, o uso de recursos naturais, os preconceitos, que não têm sido diretamente contemplados por essas áreas. Esses temas devem ser tratados pela escola, ocupando o mesmo lugar de importância.” (Brasil, 1997b, p.25 – destaques nossos)
É na confluência dos “temas transversais” que os professores podem chegar ao processo de redimensionamento do significado de seu trabalho e, a partir daí, promover mudanças na prática pedagógica, pois, como aponta Basso (1998), o entendimento claro do significado e do sentido do trabalho docente são fundamentais para essas mudanças.
Segundo nossa avaliação, que também foi compartilhada por Mizukami (1998), os documentos dos PCNs estão bem escritos e são de boa qualidade didática e científica trazendo boa fundamentação teórica para auxiliar o professor a repensar o significado, a finalidade do ensino como um todo, em especial, dos “temas transversais”.
No entanto, quanto a repensar o sentido do ensino, pelo menos no que tange à Educação Sexual, reconhecemos que deixa a desejar, pois está na dependência das reflexões que devem ser feitas em grupo, especialmente com a participação de profissionais das Universidades.
Para poder definir quais temas sociais que deveriam ser selecionados como transversais, a equipe responsável pela elaboração dos PCNs estabeleceu que o tema teria que atender aos critérios de urgência social, abrangência nacional, possibilidade de ensino e aprendizagem no ensino fundamental, favorecimento da compreensão da realidade e da participação social.
A Educação Sexual pôde ser incluída, então, por atender a todos os critérios acima. O fator mais decisivo para tal foi , sem dúvida, a urgência social, o que é totalmente válido e fundamentado. Uma coisa fica clara: se não fossem os problemas que a vivência da sexualidade traz para a sociedade, ela não estaria entrando agora no currículo escolar. Ter sido incluída por este critério pode interferir no sentido, para o professor, do ensino das questões da sexualidade.
De acordo com Forquin (1993, p.9),
“... ninguém pode ensinar verdadeiramente se não ensina alguma coisa que seja verdadeira ou válida a seus próprios olhos. Esta noção de valor intrínseco da coisa ensinada, tão difícil de definir e de justificar quanto de refutar ou rejeitar, está no próprio centro daquilo que constitui a especificidade da intenção docente como projeto de comunicação formadora.” (Grifo nosso)
Não se questiona a importância e necessidade urgente de um trabalho preventivo com relação a DSTs, gravidez precoce e indesejada e demais problemas ligados à uma vivência não saudável da sexualidade. Porém
“... a preocupação da escola em fazer Educação Sexual porque há necessidade de resolver e controlar os problemas (AIDS e gravidez), possivelmente torna o trabalho árduo, pesado, angustiante e desvirtua as energias que poderiam ser redobradas se se falasse da sexualidade de uma forma alegre e descontraída.
Embora se saiba que são as necessidades que, na prática, têm impulsionado o começar a falar sobre a sexualidade, é preciso assegurar que a força propulsora do trabalho seja o reconhecimento do direito.” (Figueiró, 1998, p.96-97)
A própria seleção do termo orientação sexual, nos PCNs, ao invés de educação, termo cujo uso defendemos, parece estar ligada muito mais a um trabalho diretivo e de “controle”, que a um trabalho formativo, conforme sugeriria o termo educação. [1]
“É preciso fazer com que os educadores sexuais entendam que a principal razão para desenvolvê-ela [a Educação Sexual] nas escolas é porque é um direito da criança e do adolescente conhecer sobre o seu corpo, sobre a sexualidade, com uma visão positiva dessas realidades e porque é necessário rever e transformar as formas de relação entre homem e mulher...” (Simonetti, apud Figueiró, 1998, p.96)
Pensar a Educação Sexual como uma questão do direito do educando, tem a ver, então, com a mobilização da motivação do educador para este trabalho, com o sentido do mesmo.
Cremos que pode ser útil uma análise do documento de cada um dos “temas transversais”, a fim de identificar elementos que possam ser instigadores, para o professor, do sentido do ensino do tema, bem como do seu trabalho ou, ao contrário, identificar elementos que possam atuar como limitadores do encontro desse sentido.
É possível concluir, então, que um dos fatores que pode contribuir para a viabilidade dos “temas transversais” é o fortalecimento do sentido do mesmo para o professor. É necessário considerar, ainda, outros aspectos do sentido do trabalho docente, além do “valor intrínseco da coisa ensinada”. Para isto, nos apoiaremos na análise feita por Basso (1998, p.28), que afirma que o motivo que incita o professor a realizar seu trabalho
“... não é totalmente subjetivo (interesse, vocação, amor pelas crianças etc.), mas relacionado à necessidade real instigadora da ação do professor, captada por sua consciência e ligada às condições materiais ou objetivas em que a atividade se efetiva. Essas condições referem-se aos recursos físicos das escolas, aos materiais didáticos, à organização da escola em termos de planejamento, gestão e possibilidades de trocas de experiência, estudo coletivo, à duração da jornada de trabalho, ao tipo de contrato de trabalho, ao salário etc. Quando essas condições objetivas de trabalho não permitem que o professor se realize como gênero humano, aprimorando-se e desenvolvendo novas capacidades, conduzindo com autonomia suas ações, criando necessidades de outro nível e possibilitando satisfazê-las (...) este trabalho é realizado na situação de alienação”. (destaques nosso)
Assim, voltando ao ponto inicial de nossa discussão, defendemos que a viabilidade dos “temas transversais”, como toda mudança na prática pedagógica, tem que estar comprometida com a transformação da escola enquanto local de trabalho, na busca pela delimitação do local e da jornada de trabalho, assim como das demais condições objetivas para o exercício da profissão.
Embora a transversalidade, teoricamente falando, possa ter efeitos positivos na questão da dispersão, conforme analisado, creio que estamos muito mais diante da possibilidade de ela vir a acentuar os efeitos negativos da dispersão. É preciso redobrar os cuidados, pois o perigo é real, enquanto não se conseguir consolidar a profissão docente.
Autonomia e construção do saber
Para iniciar o desenvolvimento desta temática, é interessante o parecer de Machado (1998, p.95), emitido a respeito da possibilidade, ou não, da materialização da nova LDB.
“As diretrizes e bases da educação não têm outra maneira de existir, de materializar-se, senão como parte integral da complexa realidade quotidiana da escola. Por essa razão, ao invés de discutir em que medida a escola se ajustará ao texto legal, procuro destacar que o ordenamento interno das escolas, na busca da construção da cidadania em tempos de globalização, dependerá não só das virtudes advindas do texto legal ou será impedido pelos seus vícios, mas da reconstrução de relações que entre si estabelecem professores, alunos e conhecimento.” (destaques nossos)
Acreditamos que essa visão sobre as condições para a materialização da nova Lei aplica-se, também, para a materialização dos PCNs e, em especial, dos “temas transversais”, aqui tratados.
A questão de reconstruir relações entre professores, já foi abordada, na medida em que falamos sobre a necessidade de realizar mais debates, reflexões, estudo em grupo, de poder dispor de mais tempo juntos, na mesma escola, para assegurar uma atuação interdisciplinar.
Quanto a reconstruir a relação dos professores com os alunos e com o conhecimento, é um processo que requer uma nova postura do professor frente ao conhecimento sistematizado e proposto por diretrizes curriculares oficiais.
O professor precisa apropriar-se do saber de forma autônoma e crítica, para que os alunos também possam aprender com eles a desenvolver semelhante atitude diante do conhecimento sistematizado. (Mazzeu, 1998)
Na medida em que o professor vai transmitir o conhecimento científico, sistematizado, acaba por construir um saber escolar, ou seja, por produzir um novo conhecimento, ao procurar a melhor forma de fazer com que o aluno compreenda e o assimile. Embora hajam normas e diretrizes curriculares oficiais, no espaço de sua sala de aula, o professor é o profissional que controla e executa o seu trabalho, o que confere uma característica singular à sua profissão.
Em sua atividade, o professor produz saberes e práticas que, infelizmente, não são devidamente considerados, pois apenas conhecimento científico tem status de conhecimento. Aliás, nem o próprio professor se dá conta de que produz saberes. O professor, bem como os pesquisadores, precisam estar atentos para o saber presente no espaço escolar, na prática de sala aula, considerando a vivência e o vivido.
Vários são os pesquisadores que têm voltado sua atenção para esta questão, considerando o professor como alguém que constrói saber em seu trabalho cotidiano e cujo saber precisa ser aproveitado para a consolidação da profissão docente. Entre eles, citam-se: Caldeira, (1995), Dias-da-Silva (1998), Nóvoa (1997) e Penin (1996).
Esse saber necessita de ser retroalimentado continuamente, conforme Caldeira (1995, p.7)
:
“O conteúdo do saber cotidiano do professor pode diminuir quando se torna supérfluo, ou pode aumentar, mediante a apropriação de novos saberes. Nesse último caso, duas são as fontes: as novas experiências sociais e pessoais e os conhecimentos produzidos pela ciência, pela filosofia e pela arte”.
Quando se trata dos “temas transversais”, o conhecimento sistematizado que eles envolvem é, em grande parte, novo para a maioria dos professores. No documento do PCN que traz a apresentação dos “temas transversais”, o Ministério de Educação e Desporto reconhece esse dado e afirma que:
“As escolas de formação inicial não incluem matérias voltadas para a formação política nem para o tratamento de questões sociais. Ao contrário, de acordo com as tendências predominantes em cada época essa formação voltou-se para a concepção de neutralidade do conhecimento e do trabalho educativo”. (Brasil, 1997b, p.52)
Por outro lado, o Ministério propõe um desafio para que os professores não esperem estar “prontos” ou “formados” (destaques do autor) para começar a aplicar a transversalidade.
É uma proposta interessante, desde que se considere que trabalhar os temas com os alunos não significa apenas tentar aplicar o conteúdo apresentado em cada documento, mas que se proceda a um exercício de estudo, aplicação e reflexão crítica, em conjunto com os demais professores, em duas concomitantes vertentes: a do conteúdo sistematizado inerente ao “tema transversal” e a da experiência, da prática cotidiana, da construção do saber advindos dos esforços de aplicação dos conteúdos, pelo professor.
A idéia de pesquisa-ação da qual fala Giovanni (1998) e Costa (1995), entre outros, vem reforçar essa idéia.
“A pesquisa-ação tem se apresentado como um movimento que tem contribuído para que os docentes se voltem para o estudo de sua própria atividade e, interpretando os fenômenos de sua prática desde o interior do mundo escolar, se transformem, eles próprios em alimentadores de sua profissão. É uma alternativa para o fortalecimento da profissão e que pode ser entendida como estratégia para resistir à perda do controle.” (Ozga e Lawn, apud Costa, 1995, p.151).
Estudar sua própria prática pedagógica levará ao fortalecimento do saber que é construído por ele nessa prática.
Na mesma linha de raciocínio, nos deparamos com a preocupação, tão bem explicitada por Schön (1997), em formar professores como profissionais reflexivos, tanto na formação inicial, quanto na continuada. E ser reflexivo, pensando a própria prática pedagógica, implica em tentar entendê-la no contexto educacional e político no qual se insere.
Assim, é preciso que o professor tenha consciência do discurso neoliberal que é a base de nossa política educacional brasileira, tal qual é apontado por vários estudiosos, entre eles, Bueno (1996), Marrach (1996) e Gentili (1995).
“Para a educação, o discurso neoliberal parece propor um tecnicismo reformado. Os problemas sociais, econômicos, políticos e culturais da educação se convertem em problemas administrativos, técnicos, de reengenharia. A escola ideal deve ter uma gestão eficiente para competir no mercado. O aluno se transforma em consumidor do ensino, e o professor, em funcionário treinado e competente para preparar seus alunos para o mercado de trabalho e para fazer pesquisas práticas e utilitárias a curto prazo.” (Marrach, 1996, p.54-55)
Desta forma, é difícil conseguir êxito nos esforços para desenvolver, no educando, a cidadania, como previsto nos PCNs, pois no neoliberalismo, um dos objetivos centrais é a preparação para o trabalho, sendo a aquisição do conhecimento a base para a competitividade no mercado de trabalho.
O professor precisa tomar consciência, também, do fato de que, conforme aponta Bueno (1996), entre outros, as políticas brasileiras atuais, para a educação básica, e aqui se encaixam os PCNs, têm como matriz o Plano Decenal de Educação para Todos que, por sua vez, está inserido em movimentos reformistas internacionais, que têm ligação com o Banco Mundial.
Com o movimento reformista, o Estado controla a formação e o trabalho docente. As formas de regulação social advindas das reformas são testes de rendimento escolar e avaliação da qualidade da escola. Os professores precisam lutar unidos para obterem o controle público e democrático sobre a escola e a formação docente e a saída é a construção de comunidades profissionais. (Davini, 1997).
Esta saída tem a ver com as alternativas pontuadas neste texto, para a viabilidade dos “temas transversais”, tais como: debate e reflexões em grupo, crítica ao conhecimento sistematizado e construção do saber cotidiano do professor.
Apesar de sugerir o controle público e democrático sobre a escola, Davini (1997, p.149) defende a idéia de centralização das diretrizes da Educação, o que acreditamos ser procedente. Segundo a autora,
“a análise das estratégias de reforma não significa censurar per se as linhas de centralização político-administrativa ou a normatização de saberes curriculares.
É certo que a descentralização das decisões facilita e promove mais participação de comunidades locais, dos professores e diretores de escolas. Entretanto, há poucos indícios de que a descentralização possa melhorar a educação”.
Finalizando, pode-se dizer que a viabilização dos “temas transversais” é um processo difícil, longo, porém viável, que requer uma construção em coletividade. Os resultados de sua aplicação podem ser bastante promissores, por se tratarem de temas que, ao serem desenvolvidos junto aos alunos os alunos, podem levar os professores a “se trabalharem”, ou seja, a se aprimorarem como cidadãos. Em especial os temas de pluralidade cultural e orientação sexual são muito úteis para ajudar professores e alunos a entenderem o processo de construção histórico-social dos valores da sociedade, sejam eles culturais, morais e religiosos, entre outros, para poderem participar do processo de transformação social.
Notas
* Psicóloga e Docente do Depto de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Educação Sexual pela SBRASH – Soc. Bras. de Sexualidade Hum. / SP. Mestre em Psicologia Escolar pela USP / SP. Doutoranda em Educação pela UNESP de Marília / SP. End: Rua Papa João XXIII, nº 82. - CEP: 86.182 060 Cambé Pr. - E.mail: figueiro@inbrapenet.com.br
[1] Para um aprofundamento da problemática das terminologias adotadas em Educação Sexual, ver: Figueiró, 1996.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Basso, I. S. (1998). Significado e sentido do trabalho docente. Cadernos CEDES, 44:19-32.
Secretaria de Educação Fundamental (1997a). Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais (v. 1). Brasília: MEC/SEF.
Secretaria de Educação Fundamental (1997b). Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais, ética (v. 8). Brasília: MEC/SEF.
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