Alfabetização sem interrupções
Rodrigo Martins
A progressão continuada, que prevê o fim da reprovação dos alunos dos três primeiros anos do ensino fundamental, apesar das vantagens, encontra forte oposição.
Conselho Nacional quer o fim da reprovação no início do ensino fundamental
Nos próximos dias, o ministro da Educação, Fernando Haddad, receberá uma resolução aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) que prevê o fim da reprovação nos três primeiros anos do ensino fundamental. A medida, na prática, é uma tentativa de resgate dos ciclos de progressão continuada, criados com o propósito de combater a repetência e a evasão escolar.
Pelo sistema, o aluno só pode ser reprovado ao término de cada etapa de aprendizagem, que pode variar de dois a quatro anos, dependendo do modelo adotado pela escola. No regime seriado, majoritário no País, o estudante pode ser reprovado a cada ano.
O texto, aprovado no início de julho pelo CNE, depende da homologação do Ministério da Educação (MEC). Ele não prevê a adoção dos ciclos em todas as fases da educação básica, mas deixa explícita a recomendação para as séries iniciais, de forma a garantir a continuidade do processo de alfabetização das crianças. “Mesmo quando o sistema de ensino ou a escola, no uso de sua autonomia, fizerem opção pelo regime seriado, será necessário considerar os três anos iniciais do ensino fundamental como um bloco pedagógico ou um ciclo sequencial não passível de interrupção”, afirma o parecer.
Em 2008, mais de 79 mil alunos da primeira série da educação fundamental não passaram de ano. O número representa 3,5% das matrículas dessa série. Para especialistas, a reprovação numa idade tão precoce (6 anos) compromete o desempenho do aluno por toda a trajetória escolar. “É preciso reconhecer que as crianças precisam de um tempo maior para se alfabetizar. Se ela tiver alguma dificuldade, devemos ajudá-la e não reprová-la”, afirma Clélia Brandão, presidente da Câmara de Educação Básica do CNE. “Reprovar é um fator de desestímulo. E, se resolvesse algo, o Brasil seria um dos países com melhor qualidade de ensino do mundo.”
O ciclo de alfabetização de três anos não deve encontrar problemas para ser ratificado pelo MEC. “Não se trata de maquiar dados estatísticos. Uma vez reprovada, a criança tende a repetir os mesmos erros, caso seja submetida à mesma estratégia de aprendizagem que fracassou com ela”, avalia a secretária nacional de Educação Básica, Maria do Pilar Lacerda. A educadora destaca, no entanto, que as escolas não serão obrigadas a aderir aos ciclos. “Os sistemas de ensino têm autonomia para fazer suas escolhas.”
Apesar das vantagens alardeadas pelos defensores dos ciclos, a medida pode encontrar forte oposição. A cada nova eleição, surgem críticas ferozes ao modelo, apelidado pelos críticos de “aprovação automática”. No ano passado, por exemplo, um dos primeiros atos do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB), foi a extinção, por decreto, dos ciclos de progressão no ensino fundamental, uma de suas promessas de campanha. Apenas o ciclo inicial, de alfabetização, foi poupado. Em Várzea Paulista, no interior de São Paulo, um promotor conseguiu uma liminar na Justiça para impedir a progressão continuada nas escolas municipais. Para embasar o pedido, destacou relatos de diretores de escolas que admitiam possuir “alunos concluintes do ensino fundamental com graves deficiências de leitura e escrita”. Pouco depois, a prefeitura conseguiu derrubar a liminar, que exigia a retenção dos alunos que não tinham aprendido 50% do conteúdo previsto no ano letivo.
Para o educador Miguel Arroyo, professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-secretário- adjunto de Educação de Belo Horizonte, esses exemplos foram desastrosos. “A cultura da reprovação só serve para segregar e estigmatizar os alunos, como se eles fossem os únicos responsáveis pelo fracasso escolar”, afirma. “Ignora-se o fato de que as escolas estão despreparadas, com salas superlotadas, professores de baixa qualificação, estrutura precária. Em vez de atacar esses problemas, é mais fácil punir os alunos, deixar os retardatários para trás.”
Na mesma linha segue a argumentação de Roberto Leal, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação. “Não temos nada contra os ciclos, mas é preciso que as escolas tenham condições de suprir as necessidades dos alunos com problemas”, pondera. De acordo com a educadora Magda Soares, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, a receita de sucesso é conhecida por todos, mas pouco aplicada. “É preciso envolver o aluno, levar em conta o contexto social no qual está inserido, avaliá-lo sempre, oferecer reforço e acompanhamento individual durante toda a trajetória escolar. Só que essa é uma realidade muito distante da maioria das escolas brasileiras.”
Cerca de 30% das escolas públicas brasileiras adotaram os ciclos de progressão continuada, segundo o Censo Escolar de 2006, o último a separar dados dos diferentes modelos. A medida não garante desempenho superior dos alunos, mas reduziu os indicadores de reprovação e evasão escolar. Dados do Ministério da Educação revelam que o abandono no ensino fundamental passa dos 9% no sistema seriado, enquanto as escolas com ciclos têm uma taxa de evasão na casa dos 5%. Além disso, o número de reprovados no regime de progressão é de 9,1%, diante aos 15,5% do outro sistema.
Quanto à qualidade do aprendizado, ao contrário do que pregam os críticos, não há diferenças significativas. Um dos poucos estudos dedicados a comparar o desempenho dos estudantes dos dois sistemas foi publicado no fim de 2008, por pesquisadores do Banco Itaú, da USP e do Ibmec. Ao avaliar as médias de 23 mil escolas estaduais na Prova Brasil, exame que avalia os alunos da rede pública, eles constataram uma variação nas notas inferior a 2% – ora pendendo a favor de um modelo, ora para outro. Conclusão: a disparidade no desempenho era ínfima, se comparada aos benefícios da redução do abandono nas escolas que aderiram aos ciclos.
Mesmo sendo apenas uma recomendação do Conselho Nacional de Educação, Carlos Eduardo Sanches, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), aposta numa adesão maciça ao ciclo de alfabetização de três anos. “Os estudos comprovam que a reprovação não garante sucesso escolar. Não vejo resistência por parte dos gestores públicos em relação a essa questão.”
O educador Artur Gomes de Morais, professor da Universidade Federal de Pernambuco, destaca, porém, a necessidade de preparar melhor as crianças que ingressam no ensino fundamental. “Países como a França e a Espanha, usando ciclos, já assumiram que as crianças devem estar alfabetizadas ao término do ano letivo em que completam 6 anos de idade”, afirma. “Para que isso ocorra, é preciso universalizar o acesso à educação infantil e estimular a criança a refletir sobre a escrita alfabética desde os 4 anos.”
Fonte: Carta Capital – http://www.cartacapital.com.br/
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