Educação |
A infância tem sido considerada o melhor momento para o indivíduo iniciar sua emancipação mediante a função liberatória da palavra. Segundo especialistas, entre os oito e treze anos estaria a faixa de idade em que as crianças revelariam maior interesse pela leitura. Richard Bamberger reforça, no livro Como incentivar o hábito da leitura, a idéia de que é importante habituar a criança às palavras: "se conseguirmos fazer com que a criança tenha sistematicamente uma experiência positiva com a linguagem [...], estaremos promovendo o seu desenvolvimento como ser humano". Confiando nessa idéia, pesquisadores têm se empenhado em mostrar aos pais e professores a importância de se incluir o livro no dia-a-dia da criança, salientando as vantagens únicas da literatura em relação a outros veículos de comunicação, principalmente em relação à flexibilidade e ao poder de escolha do leitor. Maria Helena Martins chama a atenção para o contato sensorial estabelecido com o objeto livro que pode revelar "um prazer singular" na criança. Por meio dos sentidos, a criança é atraída pela curiosidade, pelo formato, pelo manuseio fácil e pelas possibilidades emotivas que o livro pode conter. A autora afirma que "esse jogo com o universo escondido no livro" pode estimular no pequeno leitor a descoberta e o aprimoramento da linguagem, desenvolvendo sua capacidade de comunicação com o mundo. Esses primeiros contatos despertam na criança o desejo de concretizar o ato de ler o texto escrito, facilitando o processo de alfabetização. A possibilidade de que essa experiência sensorial ocorra será maior se mais freqüente for o contato da criança com o livro. No ambiente escolar, no entanto, o contato da criança com o livro se concretiza, na maior parte das vezes, com as cartilhas por sua vez criticadas em diversos aspectos. Um deles, mais próximo ao foco deste texto, diz respeito à fragmentada e lacunar experiência que tais livros propiciam ao aluno, muitas vezes atuando mais como empecilho do que como estímulo à leitura de livros, de maneira geral. Mas, apesar de problemas estruturais como esse, é na escola que as crianças aprendem a ler. O ambiente escolar tende a proporcionar o primeiro e por vezes único contato das crianças com a literatura. E a relação entre a escola e a literatura vai mais além: a proposta subjacente a ambas é a formação da personalidade, pois as duas instituições voltam-se à formação do indivíduo. A escola, por ser estruturada com vistas à alfabetização e tendo um caráter formativo, apresenta-se como ambiente privilegiado para a formação do leitor. Outros ambientes capazes de auxiliar nessa tarefa, como o familiar, podem, eventualmente, não estar direcionados nesse sentido. Já a escola, mesmo com suas limitações, mantém-se como espaço reservado à iniciação da leitura. Para formar leitores, a escola se utiliza basicamente de um material determinado e de profissionais encarregados de instruir sobre o uso desse material. Para sua formação leitora, é imprescindível que a criança conheça livros de caráter estético, diferentes dos pedagógicos e utilitaristas, usados na maioria das escolas. O livro estético (de ficção ou poesia) proporciona ao pequeno leitor oportunidade de vivenciar a história e as emoções, colocando em ação a capacidade de imaginação e permitindo uma visão mais abrangente do mundo. A importância da obra de ficção na escola é problematizada por Regina Zilberman, que vê na natureza formativa um aspecto em comum entre a literatura e a escola. A autora salienta que a literatura tem "amplos pontos de contato" com o cotidiano do leitor; independentemente da fantasia do leitor e da discrepância em relação ao contexto em que uma obra é concebida, mantém-se a comunicação com o destinatário atual (o jovem leitor). As obras de ficção ajudam o leitor a conhecer melhor seu próprio mundo. No entanto, o caráter formador da literatura difere de certa função pedagógica: enquanto o "pedagogismo" se empenha em ensinar transmitindo conceitos definidos, a ficção estimula o desenvolvimento da individualidade; não se pode definir ao certo o que a literatura irá ensinar ao leitor. A criança terá mais estímulo imaginativo com a ficção do que com os conteúdos curriculares convencionais. Entretanto, se os professores oferecem às crianças livros inadequados ou desinteressantes, estão desestimulando a leitura, correndo o risco de perder para sempre um leitor em formação. Mas, se consegue leitura, a escola pode suscitar o gosto pelo livro, que tende a ser cultivado nas fases posteriores do desenvolvimento. Para isso, é preciso ajustar o conteúdo das leituras às necessidades e interesses do pequeno leitor. A poesia infantil poderia ser o gênero escolhido para dar início à difícil tarefa de despertar o gosto pela leitura, pois a poesia é, para vários autores, o único gênero capaz de despertar leitores em qualquer fase ou faixa etária de leitura. O vínculo da criança com o texto poético começa cedo. As cantigas infantis e as parlendas, por exemplo, introduzem elementos poéticos logo no início da vida (aliterações, ritmo, e outras formas estruturais básicas da poesia). Marcas da poesia popular também são constantes na tradição da oralidade brasileira e indicadoras de um estágio inicial de literatura. Nos primeiros anos de escolarização, o trabalho do professor com a linguagem é predominantemente oral e mnemônico. A memorização de quadras com apoio em narrativas é exemplificada por Lígia Averbuck como "um tipo de poesia em que a narrativa encadeada a uma história se associa às rimas, às sonoridades e ao ritmo da frase". Também no que se refere ao aprendizado da poesia em séries iniciais, o pesquisador George afirma que "na fase da infância é que se apreende melhor o caráter lúdico que a linguagem toma em certos usos. A parlenda oferece uma quantidade de exemplos que permitem compreender como a palavra pode jogar com ela mesma". O jogo de palavras, o ritmo, a sonoridade que fazem o encanto do texto poético são também apreciados espontaneamente pelas crianças desde cedo. O trabalho inicial com poesia é o da sensibilização, da descoberta do jogo das palavras (fase fundamentalmente lúdica). Neste sentido, a escola deveria recuperar o conteúdo lúdico da poesia e resgatar sua natureza original. A criança de séries iniciais pode, por meio da poesia, exercer sua imaginação descompondo textos, relacionando o poema a outras formas de expressão, ouvindo-o e repetindo-o, descobrindo seus paralelismos, reinventando-os. Para que isso ocorra é preciso que o professor, na sala de aula, crie o clima capaz de assegurar ao trabalho de exploração do texto poético todas as possibilidades de inventividade, desde a utilização de elementos visuais, como os desenhos, os jogos visuais, as representações plásticas variadas, até as atividades rítmicas e os jogos com as palavras do poema. No entanto, em recente pesquisa, realizada em 2000 pela Universidade Estadual Paulista - Unesp, indica o pouco uso do texto poético em séries iniciais. Dentre os obstáculos estão professores inseguros, mal preparados, desconhecedores de concepções e modos de ensino com poesia, utilizadores de manuais didáticos metodologicamente equivocados e de textos poéticos com uma conotação estritamente pedagógica. Analisando as práticas de um conjunto de 45 professores de séries iniciais atuantes em Presidente Prudente - SP, aponta que embora todos percebam a popularidade e o gosto pelo texto poético entre os alunos, estes professores sentem-se incapazes de desenvolver um trabalho com poesia em sala de aula. Todos os professores afirmam que sua formação não os preparou para isso e que o livro didático não apresenta sugestões de trabalho nessa linha. A pesquisa revela ainda que nos cursos de formação em nível médio e superior do professor de séries iniciais, o ensino de Língua Portuguesa com inclusão específica de Literatura Infantil e, conseqüentemente, de Poesia Infantil não existe ou, quando aparece, prioriza conteúdos exclusivamente pedagógicos, deixando de lado os estéticos. "A poesia infantil poderia ser o gênero escolhido para dar A formação teórica deficitária do professor justifica uma série de equívocos cometidos em sala de aula. Aspectos problemáticos ficam evidentes, a começar pelo livro didático. Tais manuais cometem equívocos metodológicos, limitando a definição de poesia a um tipo de composição em versos e estrofes, com rima. Todos os livros analisados nestas pesquisas sugerem uma seqüência repetida de atividades: identificação do tema do texto, estudo do vocabulário, interpretação, estudo de gramática, aprendizagem de ortografia e produção de textos. Tais atividades mais reduzem o valor do texto poético do que proporcionam prazer na leitura da literariedade destes poemas. início à difícil tarefa de despertar o gosto pela leitura." Sobre o uso pedagógico do texto poético em sala de aula, encontramos nos estudos de Maria da Glória Bordini uma relação entre o ensino da poesia infantil e a trajetória histórica da visão de mundo veiculada por ela. A autora afirma que, desde os séculos XVIII e XIX, a visão de mundo mostrada pela poesia infantil é tendenciosa e falseadora de uma realidade a favor dos pais e mestres. O mundo, nessa tradição, é denotado de forma simplista, redutora das complexidades sociais. Sob a máscara do cômico e do ilogismo se ocultariam as contradições e desigualdades. Na modernidade, a visualização de mundo muda drasticamente, as normas da sociedade adulta são contestadas por sujeitos líricos bastante sintonizados com o mundo e com o modo de ser das crianças. A poesia infantil dos dias de hoje reforça as indagações feitas na modernidade, com humor peculiar e com formas diferenciadas, versos livres, poemas concretos, entre outros expedientes, abrindo espaço para o novo, para o prazer e para a reflexão. No entanto, as aulas de poesia descritas nas pesquisas anteriores não permitem aos leitores questionar estas mudanças e ideologias. As crianças não percebem os aspectos estéticos do texto poético, pois não contemplam o momento da leitura da literariedade. As metodologias descritas acima prevêem apenas os passos para uma abordagem artificial da poesia. "A poesia infantil dos dias de hoje reforça as indagações feitas na modernidade, Quatro momentos deveriam fazer parte da rotina da sala de aula ao se ensinar poesia: o primeiro momento é o da leitura contemplativa, quando o leitor é sensibilizado pelas impressões e emoções estéticas do texto (fruição-prazer). O segundo sugere que os alunos elaborem uma paráfrase, ou seja reescrevam a poesia com suas próprias palavras, que os auxiliará a localizar indícios importantes para a análise. Depois, o professor deveria situar o autor e a obra, discutindo os aspectos pragmáticos do texto, explicitadores do movimento social da criação. O terceiro momento é o da análise, ou seja, da decomposição do poema em diversos níveis, para uma posterior composição final do sentido total e unitário do texto. Tal análise se dá nos seguintes níveis: 1. visual, da composição do poema no espaço; 2. fônico, da organização dos sons (assonâncias, aliterações etc.); 3. léxico, dos termos usados (técnicos, neologismos etc.), do nível de linguagem etc.; 4. morfossintático, das classes de palavras e de suas combinações (predomínio de substantivos, adjetivos etc.); e 5. semântico, dos efeitos de sentido, as figuras de linguagem. O quarto é definido por síntese. Esta atividade prevê que professores e alunos discutam todos os constituintes do poema para chegar a uma interpretação crítica finalizadora do ato da leitura.com humor peculiar e com formas diferenciadas." Como introduzir esta metodologia em salas de alfabetização? A resposta inicial seria: brincando. O professor deve perceber no exercício diário da leitura de poemas que os elementos que aproximam o ser humano do poético são as emoções e a sonoridade. A aprendizagem pode ganhar um colorido especial por intermédio do ensino da poesia, pois a criança tem afinidade com o humor, com o belo, com a fantasia, com o lúdico. Cabe ao professor entrar neste mundo particular, onde sonho e realidade se juntam num universo de sensações e desejos para, a seguir, brincar. Como, então, brincar com poesia? Alguns elementos devem ser explorados antes do trabalho de criação de poesias. Inicialmente, podemos levar nossos alunos a descobrir a sonoridade mediante um resgate das cantigas de roda, que utilizam na sua estrutura repetições cadenciadas. Podemos cantar, do pátio para a sala, uma música que será tema de um trabalho com linguagem escrita e leitura. Exemplos: Galinha do vizinho A galinha do vizinho Bota ovo amarelinho. Bota um, bota dois, Bota três, bota quatro, Bota cinco, bota seis, Bota sete, bota oito, Bota nove, bota dez! Transformação: A galinha do João Bota ovo de pavão. Bota um, bota dois, .... Bota nove, bota dez! Ou: A galinha da Ivete A galinha pode ser de cada criança da sala e, em um exercício divertido, o aluno deve pensar na rima para seu nome. Não achando, pode colocar seu nome no aumentativo ou diminutivo e procurar uma nova rima. Além de um processo instigante de procurar e descobrir palavras com sons finais semelhantes (rimas), trabalha-se com o que alguns já conhecem, as cantigas de roda, e, portanto, recupera-se a cultura oral. O vocabulário do aluno tende a aumentar, pois ouvirá as rimas para os nomes dos colegas. O professor pode aproveitar esse momento e escrever uma lista com nomes próprios e rimas na lousa. A galinha pode vir a ser tema de leituras posteriores. O docente pode ler em voz alta fábulas que tenham o tema galinha, como A galinha alinhada (Elias José). O trabalho com o texto, as conversas sobre a música, os personagens das cantigas tendem a desenvolver a imaginação, a criatividade, a expressão e a oralidade.Bota ovo de chiclete. Bota um, bota dois, .... Bota nove, bota dez! Um outro tipo de texto a ser explorado são as adivinhas. As adivinhas são perguntas ou declarações de forma enigmática a serem respondidas. Os alunos podem ser estimulados a coletar este tipo de texto com familiares, para, em outro momento, compartilhar por meio da leitura as mais diversas indagações. Exemplo: O que é, o que é, Uma casinha branca Sem porta Sem tranca? (O ovo) As parlendas também são textos de que as crianças gostam muito. Mais uma vez, os motivos desta identificação são os elementos de sonoridade e a familiaridade com o texto. Exemplo: Um dois, feijão com arroz Em seguida, viriam os trava-línguas. Trava-língua é um pequeno texto, rimado ou não, e de pronunciação difícil. Exemplo:Três quatro, feijão no prato Cinco seis, feijão inglês Sete oito, comer biscoito Nove dez, comer pastéis O sabiá não sabia. Durante ou depois da leitura e do trabalho com esses textos, a ação de ler um livro de poesia e ler para as crianças tende a ser representativa. Outra atividade sugerida é a leitura do "poema do dia". A atividade consiste em ler um poema todo dia. O professor deve estabelecer um momento para a leitura da poesia. No início, o poema que será lido é selecionado pelo professor, depois os alunos serão convidados a trazer poemas diferentes. O docente pode perguntar o por quê da escolha, para estimular a criticidade e incentivar o gosto pela leitura de textos poéticos. Nessa atividade, o poema é somente lido em momento de descontração e não deve ser copiado, trabalhado, somente lido, pois, segundo Bartolomeu Campos Queiroz: "quando transformamos a literatura em instrumento pedagógico, estamos enfraquecendo-a". Que o sábio sabia. Que o sabiá não sabia assobiar. Neste sentido, ressaltamos a importância do trabalho com poesia infantil em salas de séries iniciais. Os objetivos foram colocados no decorrer deste texto, e finalizamos destacando a formação de leitores críticos, começando pelos docentes e seguindo pelas crianças. Uma de nossas funções como professores é tentar levar nossos alunos para uma viagem mais profunda, aquela viagem poética, que ensina a Arte e revela a condição libertadora da linguagem, só alcançada na poesia. De ramo em ramo, A escola, através da concepção equivocada de poesia não pode se tornar "gaiola" ou "aquário". No entanto, a poesia pode ser ensinada, para desencadear em seus leitores processos emocionais que favorecem a liberdade de criação, libertam o "eu", mostram (como no poema de Elias José) aos alunos outros espaços até então desconhecidos, "que se descobre, e, assim, se desaliena". Cabe a nós, professores, iniciarmos o trabalho com texto poético para darmos asas à leitura, à reflexão, à descoberta, ao dizer, à recriação.Meio sem rumo, Passa pulando Pelo pessegueiro Um passarinho. No parque, ele passa e pula e pia e não pára pra pegar um pêssego. Que pressa é essa, Passarinho? Pare um pouco pra prosear, passarinho. Mas se não pode Parar um pouco, que voe em paz e pule sempre e sempre pie, passarinho. (Elias José) Renata Junqueira de Souza é professora do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Estadual Paulista (UNESP), doutora em Teoria da Literatura, pós-doutorado em Literatura e Educação na Universidade de British Columbia, Vancouver, Canadá, especialista em Literatura Infantil, coordenadora do Laboratório de Leitura e Arte-Educação da FCT/UNESP. Caroline Cassiana Silva dos Santos é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia - Universidade Estadual Paulista (FCT/UNESP) - São Paulo/Brasil, onde desenvolve pesquisa intitulada "Literatura infantil e formação de professores: possibilidades para o uso do texto literário fantástico em sala de aula", que conta com financiamento da FAPESP. |
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terça-feira, 26 de abril de 2011
Poesia infantil e alfabetização: o processo de formação do leitor de poesias
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