Sem entrar em maiores detalhes sobre o já crucial estado de subnutrição cultural em que se encontram os estudantes brasileiros, gostaria de dar um toque de sino de catedral nos educadores responsáveis pela missão de introduzir o jovem no universo literário. Falo principalmente aos professores e aos pais, que também já foram vítimas, noutras épocas, de horizontes estreitos e outros vícios.
Hoje a situação é muito mais grave. Entre colonizados e colonizadores, esquerdas e direitas, censuras e libertinagens, a maioria da juventude que estuda simplesmente dança conforme a música. Assiste muita TV, ouve um som, navega na Internet e lê os mais bem produzidos visuais de todos os tempos, dos quadrinhos idiotizantes à anatomia quase sempre escrachada das playboys.
Os bem alimentados (com proteínas, vitaminas e sais minerais e tudo o mais a que têm direito e o governo permite) apresentam um quadro de disfunção cultural máxima, caracterizado pelos sintomas generalizados de movimentos brake e expressões rap, heavy, rave ou hip-hop. Há uma incapacidade explicita de comunicação, verbal e escrita, e a adolescência é prolongada, dentre outros fatores, por um vocabulário de 200 gírias e alguns códigos em html ou java. E o pior é que tudo isso pode vir, ainda, acompanhado do discurso condescendente de sociólogos, psicólogos, pedagogos e orientadores educacionais e de uma total apatia de pais atribulados, acessados por celulares. Além de uma empatia aproveitadora embutida em propagandas na televisão, revistas, canções, filmes, roupas e outras ditaduras de comportamento, inclusive o das drogas.
Juventude pobre. Pobre no falar, no vestir, pobre em comunicar-se. Vocabulário paupérrimo. Míseros conhecimentos. A sociedade, matreiramente, tira vantagens do estado de choque. O jovem não opina, não chia, não protesta, não opta, não coloca em risco a vida do sistema. O sistema, por sua vez, recompensa o jovem com um afrouxamento de valores, de cobranças, pagando regiamente por seus deslizes e delírios. O sistema aumenta o volume do som, a forma da imagem, o consumo da ilusão. Incentiva o desperdício, o descartável. Poupa-lhe o trabalho da descoberta, o caminho do conhecimento, o mérito do crescimento, da maturidade e da transformação.
E começa cedo, na escola, o trabalho de desinformação do jovem. À juventude desnutrida nada de saber; aos subnutridos, merenda escolar (quando há) e variações nas leis de diretrizes e bases de ensino. Aos privilegiados que comem e moram, sonegação de informações relevantes, de cultura e de sabedoria.
Em se tratando de leitura de livros é doloroso constatar que alunos do 2o grau jamais ouviram sequer falar de escritores brasileiros chamados Machado de Assis, Castro Alves, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Casimiro de Abreu, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa , sópara citar alguns. Ou de Dostoievski, Miguel de Cervantes, Tolstoi, James Joyce, Shakespeare, Goethe, Fernando Pessoa, Proust, Thomas Mann, Heminghway, Willian Faulkner ou Kafka. Nem de Homero, Dante, Virgílio. Muito menos de Aristóteles e Platão. Sequer os bons e ótimos autores contemporâneos de todos os gêneros dão o ar da graça nas escolas. A praga alastrou-se e já atingiu a própria universidade. Estudantes do terceiro grau, do curso “superior”, com raras exceções, não lêem. Tampouco escrevem, claro.
Tais nomes e de centenas de outros escritores e filósofos que fizeram e fazem o universo fabuloso da poesia, da ficção e da evolução do pensamento humano não constam da formação intelectual dos nossos jovens estudantes. Já vi professores alegarem a dificuldade dos textos, a complicação da linguagem, a dificuldade de comprar certos livros. Esses professores decidem arbitrariamente sobre a incompetência de seus alunos em assimilar textos não-pasteurizados ou então sucumbem à pressão exercida pelos que exigem um autor fácil, um livro fino, uma história "interessante". Com as bênçãos do Ministério da Educação.
São milhares de argumentos furados a favor da bitolação. Que jovens tem preguiça de ler é um fato. Que leitura é hábito também é do conhecimento de todos. Que a maioria não sabe escrever porque não sabe ler é conclusão óbvia.
Este país tem um débito muito grande para com a juventude (que vai reclamar porque está mal-acostumada): deve ensiná-la a ler.
Apesar da preguiça, do “desuso”, da sonoridade atemorizante dos títulos de certas obras e da falta de ilustrações para explicar e fazer com que o leitorzinho acompanhe com interesse o texto, é essencial e imprescindível que um aluno do 2o grau, por exemplo, tenha relativos conhecimentos da literatura universal e, em especial, da nossa. Isso significa saber falar, escrever, ouvir e entender a nossa língua.
Não me lembro de trauma adquirido por ter lido quarenta títulos clássicos quando era adolescente. Admito que é um exagero (eu não entendi muita coisa na época, mas a ficha caiu depois, e bem), mas pelo menos uma noção de letras, de literatura, quem escreveu o quê e um contato mais íntimo com os escritores é mínima obrigação curricular. Encurta até o caminho para ir ao cinema e assistir um bom filme.
Chega de facilitar a vida do estudante. O sistema do funil está falido e falindo a sociedade. O próprio vestibular é um mistério para mim. E formar, em nível universitário, milhares de jovens e depois bater com a porta na cara deles na hora em que vão exercer sua profissão, é de uma boçalidade que nada tem a ver com o capitalismo em si, nem com qualquer outra ideologia dominante.
Chega de fornecer minguados conhecimentos aos jovens, às crianças. Apostilas decididamente não fazem a cabeça de ninguém. Além de se configurarem como pirataria institucionalizada oferecem uma miscelânea antididática, uma pasteurização conveniente demais, um liquidificador de tudo. Nós temos uma cultura, um legado imenso que deve ser transmitido a esta e às próximas gerações. Releituras de clássicos, através de condensações de grandes obras feitas por certas editoras, mutilando a obra dos autores e sonegando a essência da informação é política econômico-educacional pra boi dormir, pra aluno não dar trabalho para o mestre e sair por aí dizendo que leu a Odisséia. Leu droga nenhuma. Leu um misto-quente, um texto-clip e não captou nada.
Com a palavra os responsáveis pela educação e cultura deste país.
Assim foi idealizada Brasília, assim Lúcio Costa apresentou seu projeto perante a direção da Comissão Urbanizadora para a realização da Nova Capital:
"Ela deve ser concebida não como um simples organismo capaz de conter satisfatoriamente e sem esforço as funções vitais próprias de qualquer cidade moderna, não apenas como urbs, mas sim como civitas, possuidora de todos os atributos inerentes a uma Capital. E, para isso, a primeira condição é conseguir o urbanista que esteja imbuído de uma certa dignidade e nobreza de intenções, já que dessa atitude fundamental advém a harmonia e o sentido de conveniência e medida capazes de conferir ao conjunto projetado o caráter monumental desejado. Monumental, não no sentido de ostentação e sim no sentido de expressão palpável, digamos, consciente de tudo o que vale e significa. Uma cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, porém ao mesmo tempo uma cidade viva e aprazível, propícia para o devaneio e o recolhimento intelectual, capaz de transformar-se, com o tempo, além de centro do governo e da administração, em um foco de cultura dos mais significativos e refinados do País”.
"Dito isto, veremos agora como nasceu, se definiu e resolveu a presente solução:
1 – Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou nele se posiciona: dois eixos que se cruzam em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da Cruz.
2 – Logo se tratou de adaptá-la à topografia local, à desembocadura natural das águas, à melhor orientação, arqueando para ele um dos eixos a fim de incluí-lo no triângulo eqüilátero que define a área de urbanização.
3 - E houve o propósito de aplicar os princípios generosos da técnica de caminho – inclusive a eliminação dos cruzamentos – à técnica urbanística, proporcionando ao eixo arqueado, correspondente às vias naturais de acesso, a função circulatória – tronco, com pistas centrais de velocidade e pistas laterais para o tráfego local, e dispondo-se ao largo desse eixo o grosso dos setores residenciais.
4 – Como resultado de dita concentração residencial, os centros cívico e administrativo, o setor cultural, o centro de diversões, o centro desportivo, o setor administrativo municipal, os quartéis, as zonas destinadas ao armazenamento, ao abastecimento e às pequenas indústrias locais e, por fim a estação ferroviária, foram naturalmente se ornando e dispondo ao largo do eixo transversal, que passou assim a ser o eixo monumental do sistema. Aos lados da interseção dos dois eixos, porém, participando funcionalmente e em termos de composição urbanística do eixo monumental, se localizarão o setor bancário e comercial, o setor de oficinas de empresas e profissionais liberais e ainda amplos setores de comércio varejista.
5 – O cruzamento desse eixo monumental, de cota inferior, com o eixo vial-residencial impôe a criação de uma grande plataforma livre de tráfego que não se destine ao estacionamento ali, remanso de onde se concentrou logicamente o centro de diversões da cidade, como os cinemas, os teatros, os restaurantes, etc.
6 – O tráfego destinado aos demais setores prossegue ordenado em um só sentido, na área inferior coberta pela plataforma e encravada nos dois topos, porém aberta nas faces maiores, área utilizada em grande parte para o estacionamento de veículos e onde se situou a estação vial interurbana, acessível aos passageiros pelo nível superior da plataforma. Unicamente as pistas de velocidade se fundem, porém já subterrâneas, na parte central desse piso inferior que se estende em declive até nivelar-se com a esplanada do setor de ministérios”.
ESPLANADA: UMA TÉCNICA ORIENTAL MILENAR
“Vejamos agora como nesta estrutura de circulação ordenada se integram e articulam os vários setores:
Se destacam no conjunto os edifícios destinados aos poderes fundamentais que, sendo em número de três e autônomos, encontram no triângulo eqüilátero, vinculado à arquitetura da mais remota antigüidade, a forma elementar apropriada para alojá-los. Se criou então um terrapleno triangular, com um arrimo de pedra à vista, que domina a campina circunvizinha e à qual se chega pela própria rampa da autopista que conduz ao bairro residencial e ao aeroporto. Em cada ângulo de dita praça – que bem poderia chamar-se Praça dos Três Poderes – se situou uma das Casas, ficando as do Governo e do Supremo Tribunal na base, a do Congresso no vértice, com frente igualmente para uma ampla esplanada disposta em um segundo terrapleno, de forma retangular e nível mais alto, de acordo com a topografia local, igualmente sustentado por pedras em toda a sua extensão ou perímetro. A aplicação, em termos atuais, dessa técnica oriental milenar dos terraplenos garante a coesão do conjunto e lhe confere uma ênfase monumental imprevista.
Ao largo da dita esplanada – El Mall, dos navegadores, extenso gramado destinado a pedestres, às paradas e desfiles, foram dispostos os ministérios e autarquias. Os Ministérios de Relações Exteriores e da Justiça ocupando os cantos inferiores, contíguos ao edifício do Congresso, dentro de um marco apropriado, os ministérios militares constituindo uma praça autônoma e os demais ordenado em série – todos previstos com área de estacionamento – sendo o último o da Educação, a fim de que fique perto do setor cultural, disposto de maneira de um parque, para melhor localização dos museus, da biblioteca, do planetário, das academias, dos institutos, etc, setor este também contígïo à ampla área destinada à Cidade Universitária, com respectivo Hospital das Clínicas e onde se prevê também a instalação do Observatório.
A Catedral ficou igualmente situada nesta esplanada, porém em uma praça autônoma, disposta lateralmente, não só por questão de protocolo, posto que a Igreja é separada do Estado, como também por questão de escala, tendo-se em vista o valor que deve se dar ao monumento e, ainda, principalmente, por outra razão de ordem arquitetônica: a perspectiva de conjunto da esplanada deve continuar desimpedida até mais além da plataforma onde os dois eixos urbanísticos se cruzam.” (...)
ERA PARA SER DIVERTIDO...
“...se situou então o centro de diversões da cidade (uma mescla em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées). A face da plataforma inclinada sobre o setor cultural e a esplanada dos ministérios não foi edificada – excetuando uma eventual casa de chá e da Ópera, cujo acesso pode ser tanto pelo próprio setor de diversões como pelo setor cultural contíguo, em plano inferior. Na parte da frente foram concentrados os cinemas e teatros, cuja altura é baixa e uniforme, constituindo assim o conjunto de todos eles um corpo arquitetônico contínuo, com galerias, calçadas amplas, terraços e cafés, servindo as respectivas fachadas em toda a altura de campo livre para a instalação de letreiros luminosos de propaganda.
As várias casas de espetáculo estarão ligadas entre si por ruas transversais do gênero tradicional da Rua do Ouvidor, das vielas venezianas ou de galerias cobertas (arejadas) articuladas a pequenos pátios com bares, cafés e lojas na parte detrás, com vista para o parque, tudo com o propósito de brindar um ambiente adequado para a convivência e a expansão. (...)”
“Dos lados deste setor central de diversões, e articulados a ele, se encontram os grandes núcleos destinados exclusivamente ao comércio – lojas e magazines, o das oficinas para profissionais liberais, representações e empresas, onde se situaram, respectivamente, o Banco do Brasil e a sede dos Correios e Telégrafos.(...)”
“No setor desportivo, com extensíssima área destinada exclusivamente ao estacionamento de automóveis, se instalou a praça da Municipalidade e a torre radiodifusora, a qual, se prevê, terá uma planta triangular firmada em bases monumentais de concreto adequadas, até o piso dos “estúdios” e outras instalações, elevando-se uma superestrutura metálica com um mirante localizado a média altura. De um lado estará o estádio e suas dependências e ao fundo ficará o Jardim Botânico; do outro lado se situará o Hipódromo com suas respectivas tribunas e vila hípica e, contígüo a este, ficará o Jardim Zoológico, constituindo estas duas imensas áreas verdes, simetricamente dispostas em relação ao eixo monumental, os pulmões da nova cidade.”
MORAR E VIVER BEM, COM VERDE E LIBERDADE
“Com respeito ao problema residencial, se chegou à solução de criar uma série contínua de grandes quadras dispostas, em ordem dupla ou simples em ambos os lados da faixa vial, e rodeadas de um largo cinturão de árvores frondosas, árvores de grande tamanho, prevalecendo em cada quadra uma determinada espécie vegetal, o solo com grama e uma cortina suplementar intermitente de arbustos e folhagem, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras, vista sempre em um segundo plano e como se estivesse apagada da paisagem. Esta disposição apresenta a dupla vantagem de garantir a ordenação urbanística ainda quando varie a densidade, a categoria, modelo ou característica arquitetônica dos edifícios, e de oferecer aos moradores extensas faixas sombreadas para passeio e recreação, independentemente das áreas livres previstas no interior das próprias quadras”.
"(...) A categoria social poderia, facilmente, ser identificada, atribuindo-se maior valor a determinadas quadras (...) E, seja como for, as diferenças de padrão de uma quadra a outra se neutralizarão graças ao próprio agenciamento urbanístico proposto, e não chegarão a afetar o bem estar social a que todos têm direito. Se originarão apenas de uma maior ou menor densidade, do maior ou menor espaço concedido a cada indivíduo ou família, da seleção dos materiais e do grau de elegância dos retoques. Com este fim, se deve impedir a infiltração de favelas tanto no perímetro urbano como no rural. Cabe à Companhia Urbanizadora proporcionar, dentro do esquema proposto, habitações decentes e econômicas para o total da população" .
"Estão previstos igualmente setores isolados rodeados de árvores e campo, destinados à loteação para casas individuais (...) estabelecendo-se como regra, a distância mínima de um quilômetro entre cada casa, o que acentuará o caráter excepcional de tais concessões."
"(...) Evitou-se a localização de bairros residenciais nas margens do lago, com o fim de conservá-lo intacto, adornado com bosques e campos de estilo naturalista e rústico para os passeios e distrações bucólicas de toda a população urbana. Unicamente os clubes desportivos, os restaurantes, os lugares de recreio, os balneários e núcleos de pesca poderão chegar às margens.”
“(...) Resumindo, a solução apresentada é de fácil compreensão, pois se caracteriza por sua sensibilidade de clareza do tratado original, o que não exclui, conforme se viu, a variedade no tratamento das partes, cada qual concebida segundo a natureza peculiar da respectiva função, resultando dali a harmonia de exigências de aparência contraditória. É assim que, sendo monumental, é também cômoda, eficiente, acolhedora e íntima. E ao mesmo tempo extensa e concisa, bucólica e urbana, lírica e funcional. (...)”
"Brasília, capital aérea e vial:
cidade-parque,
sonho arqui-secular do Patriarca."
Acredito na dignidade que foi a utopia de Lúcio Costa,
e na alma que tentou doar para Brasília.
Embora hoje não me importe em que lugar exatamente fique minha cidade ou meu país, embora eu ache melhor lugar nenhum em qualquer lugar, ainda assim reconheço uma poesia imensa, “bucólica e urbana, lírica e funcional”,
nesta cidade que através do seu ideal, me habita.
Apesar da fome que ronda a civitas, das infâmias cometidas por alguns de seus administradores e de tudo o mais que tenha sido feito não para o bem-estar da população em geral, mas para usufruto e propriedade de uns poucos privilegiados, ainda assim, desfigurada, entulhada, usurpada e empobrecida,
cheia de urbs e de poderes,
- ainda assim vale a pena celebrar Brasília
e continuar acreditando em utopias.
Grafite. (Do it. Graffito) S.m. Inscrição ou desenho de épocas antigas, toscamente riscado à ponta ou a carvão, em rochas, paredes, vasos etc.
Pichação. Brás. S.f. 1. Ato ou efeito de pichar; pichamento. 2. Dístico, em geral de caráter político, escrito em muro de via pública.
Pichar. Brás. V.t.d. 1. Aplicar piche em; untar com piche. 2. Escrever (dizeres políticos, por via de regra) em muros ou paredes.
(Novo Dicionário Aurélio).
GRAFITES, RISCOS E RABISCOS
Quando arqueólogos descobriram palavras e desenhos inscritos em cavernas, rochas e monumentos antigos, usaram a palavra graffiti para designar os rabiscos que provavam a existência de muitas civilizações primitivas e a sobrevivência de linguagens e cultos. O grafite serviu para datar ruínas e fornecer indícios sobre a vida cotidiana em determinadas épocas (como os grafites de gladiadores em Pompéia). Além disso, sob a forma de riscos quaisquer, feitos a carvão, era usado para adulterar figuras, estátuas e monumentos.
Um dos grafites mais famosos do mundo, segundo alguns estudiosos, é a caricatura de Cristo crucificado da parede da Domus Gelotiana, no Paladino, em Roma, que foi descoberto no século dezenove.
Atualmente, o grafite é encarado como forma de expressão que visa a comunicação rápida, autêntica, irreverente e até mesmo violenta do inconsciente coletivo. O grafite tem a intenção de registrar uma visão do mundo, de ser testemunha e memória, de ser, inclusive, arte. Uma arte que propõe a substituição dos meios de expressão convencionais, principalmente os de expressão literária e das artes plásticas; que transforma os valores estéticos; que revela pequenos fenômenos históricos; que anuncia ruidosos movimentos de vanguarda; que demonstra inventividade poética e que, por fim, se choca com o ambiente social por causa da precariedade do material empregado em sua fabricação.
O termo grafite é, pois, destinado para traduzir toda uma variedade de manifestações de sentimentos e emoções que se faz questão de inscrever em algum lugar. Já a pichação é caracterizada essencialmente pelo seu conteúdo político-social, pelo relaxamento estético, pelo processo de militância implícito no ato e, hoje, principalmente, para a comunicação e marcação de territórios de gangues e guetos
Brasília: grafites povoam o coração da cidade
Era o branco e o cinza. Era o meio. Veio a mensagem. A mensagem e o meio. Nem todos souberam dar o recado nem usar os meios. Os que torcem pelo grafite dizem que o amor veio primeiro: Lúcia, volte! Os pichadores acham que foi a contestação: Abaixo a ditadura!
Depois chegaram os poetas: Poesia Brasileira S/A; Sou um poeta, sem eira nem beira;Maria, venha conhecer minha alquimia; Nosso amor já era louco antes das novelas...
E as reivindicações, denúncias e campanhas: Quem ama não mata; Ou nós UNE ou nós acaba; Jari, quero pôr o pé aí; Mais verbas para a educação; Por melhores condições de trabalho; Pela Constituinte, etc. Os místicos avisaram: Os OVNIS estão chegando, e desenharam imagens e signos. As minorias aproveitaram para conquistar espaço e notificar meio mundo: Carlão ama Pedro Henrique; Eu amo Maria Tereza, Cláudia.
Alguns grafites de utilidade pública, nos pontos dos ônibus: Senta que vai demorar. Alguns “toques” como Quem fez 68 não fez 74. Um bocado de anarquismo e nonsense: Macarrão, the blue man 83; ZéCarlosmania. Internacionalização: Solidariedade. Nomes: Lula, Delfim, Azevedo (os mais votados pelos pichadores).
E veio a mass media, a propaganda gratuita, a artística e em seguida, a eleitoral. Gonzaguinha (o cantor, filho de Luís Gonzaga), foi multado pelas pichações de Explode, coração. Nessa explosão confundiram-se grafites e pichações, mas ambos passíveis de punição.
Existem grafites em Brasília. Há, porém, em muito maior quantidade, pichação-poluição-visual, mau gosto, uma carga enorme de negativismo, um irracionalismo antipático, clichês, agressões, deduragens, publicidade egoísta e muita, mas muita sujeira e pouca imaginação. Por que pichar placas de sinalização, orelhões, paredes de casas particulares ou comerciais, prédios públicos e monumentos com revelações sem sentido, alucinações idiotas, palavrões e humor negro, mergulhando a cidade em um clima baixo astral, deprimente e hostil? Onde o sentido mágico que belos grafites podem proporcionar aos habitantes de uma cidade que precisa tanto de cor?
Os comerciantes reclamam das pichações e da sujeira que fazem nas paredes de seus imóveis. O Código de Edificações (específico para Brasília), proíbe a pichação e prevê punição para os infratores. A maior parte dos trabalhadores em obras de construção civil, por exemplo, acha que algumas pichações são bonitinhas, alegram o ambiente, mas não gostam quando pintam frases feias, palavrões ou coisas ininteligíveis para eles.
Mas já é possível distinguir grafiteiros de pichadores. A população já se acostumou e até gosta dos grafites que enfeitam muros e tapumes na cidade. Há mesmo grafites interessantíssimos e esses artistas de rua merecem incentivo.
Aos pichadores, água e sabão
Opiniões de quatro pessoas ligadas às artes que observaram, analisaram e discutiram o grafite
“O grafite revela uma forma viva, inquieta e provocativa de participação e comunicação. Às vezes é um relato, uma fantasia não realizada, um depoimento sofrido ou debochado, talvez de quem sente necessidade de se expressar.Como forma de comunicação, parece-me que o grafite é uma das expressões mais simples e fáceis, Ele existe tanto na Europa, nos Estados Unidos, como no Brasil. A diferenciá-lo apenas, mas fundamentalmente, a cultura de cada povo. Aí, observa-se que as fontes de preocupações traduzidas por meio do grafite são muito diferentes, até mesmo na forma de executá-lo. E é, quase sempre, a forma de execução que me desagrada.
Observada a propriedade no aspecto físico, acho lindo e gosto muito. Gosto da coisa brincalhona, da denúncia contundente, do lirismo. Não gosto, e creio extremamente negativo, é quando o grafite é poluição, sujeira (grafite sobre grafite, grafite sobre cartazes, lugares inadequados...). Acho péssimo, por exemplo, ver a sinalização – que é belíssima – da nossa cidade totalmente grafitada, os viadutos “borroscados”, enfim...
Na verdade, eu não gosto da coisa assim, suja. É possível, no entanto, que ao preferí-la mais arrumada eu esteja desejando uma arte que por si só é anárquica e objetiva a provocação, de uma ou outra forma. De repente é ruim e até errado acreditar que manter limpo o patrimônio de uma cidade é mantê-la civilizada...”
(Wadel Clarimundo Gonçalves, professor, comunicólogo e ator de teatro).
“As pichações de 77 e 78 (foi o auge) refletiam a tensão psíquica que a cidade vivia. Eram pichações impessoais, muito mais criativas e mais graciosas e menos violentas. Depois que as pichações surgiram como tema de abertura da novela O amor é nosso, em padrão global, foram automaticamente incorporadas pelo sistema, virou mídia, perdendo o fascínio e a espontaneidade. As pessoas começaram a usar a pichação como propaganda, com fim determinado (que o verdadeiro grafite não tem). As pichações de antigamente eram mais saudáveis (Sexoral é bom, Sabor de veneno, Vamos nessa Vanessa, Ouvir a vaia do vento, Ora, Aurora etc). Hoje elas são muito agressivas e personalizadas, parece que a crise de identidade aumentou, todo mundo quer ver seu nome “impresso”.
Além do mais, entra a questão da poluição, não só visual, como ambiental. Constatou-se nos últimos anos que a camada de ozônio (uma espécie de oxigênio concentrado que fica em uma das últimas camadas da estratosfera), é afetada pelo uso de aerossóis. Estes, em forma de spray, liberam, entre outros elementos, o cloro, que pode quebrar as moléculas de oxigênio dessa camada. Sem o ozônio a vida na terra seria impossível, pois ele filtra os raios ultravioletas, protegendo o planeta. Uma forma ecológica de pichar é usar carvão, gizão de cera, pois ainda não se inventou um spray sem propelente. Em todo caso,l eia atentamente o rótulo”.
(Nicolas Behr, poeta e ambientalista)
“O grafite é um estado de espírito; para colocá-lo para fora, um estado de explosão. Impossível analisá-lo sem o risco da galhofa ou do excesso de autoritarismo. O grafite é arte. Cada um sente aquilo que vê. E pronto. Pietro Maria Bardi escreveu “merda” - e foi definitivo.
Pessoalmente, acho que falta imaginação, e muita, nos grafites brasilienses. Talvez por ser a cidade que somos. Talvez por termos a origem que temos, nossos grafites são pobres. São copiados e, não raro, apelativos. Os homens que definem nossas vidas estão aí, ao lado de habitações tipo BNH, os políticos; esta é uma cidade cultural, política e administrativa. Tudo poderia gerar bons grafites e, por certo, não haveria sabão e detergente para limpar todos. O grafite é a alma – oculta – de uma cidade. Brasília, que eu adoro, precisa mostrar sua consciência grafítica. Pego meu spray/E faço no muro branco/Minha Guernica/Sob todas as condições e pressões/Ditadas pela criatividade freudiana:/Qüid me vis facere, Domine?
(José Carlos de Souza, jornalista e publicitário).
"O grafite prova que não tem quem segure a boca de quem quer falar. Que não existem obstáculos para o se expressar. Se você não tem grana para publicar livros ou comprar tintas e papéis maravilhosos, o que acontece é de sair por aí com tinta de parede mesmo ou spray, lançando seus recados. Acho maravilhoso.
O grafite atual deve ter nascido do arrocho, da pobreza, em algum bairro nova-iorquino, imagino. Aliás, tem grafites e grafites. Tem uns ótimos, cheios de humor, que você até olha distraído e acaba soltando risada. Há os muito gráficos, grafites cheios de grafismo, e os políticos, tipo mandando recadinhos, marcando encontros, reivindicando.
Agora, é preciso que se tenha simancol. A responsabilidade do grafiteiro é grande, ele atinge multidões todos os dias. Queimar espaço branco quase sempre pra falar besteira não está com nada.
Em Nova Iorque, teve um ano em que o prefeito de lá liberou o metrô e os trens para serem decorados pela população. Distribuiu spray de graça pra quem quisesse e o resultado foi um lixo geral. Foram usados litros de tinta para borrocar tudo, numa des-repressão que chegou ao vandalismo. O que eles passaram de emoção foi uma sujeira, um negócio muito down.
Brasília é uma das poucas cidades que existem que não tem prédios altos nem fábricas poluindo o ar; é uma cidade muito clara, branca, com um visual que descansa a cabeça das pessoas. Acho que o grafite só deve ser utilizado por quem tem alguma coisa importante pra dizer, uma necessidade interior muito grande mesmo de se expressar. Há uma diferença enorme entre pichação e grafite. O grafite é uma coisa artística, algo como eu vi também em Nova Iorque: escrever poesia com giz, no chão, onde todo mundo vai passar em cima e apagar, mas onde muita gente também vai parar e ler o poema."
(Regina Ramalho, artista plástica).
Sabe-se, desde há muito tempo, que o xadrez desenvolve a vontade, a imaginação, a lógica, a memória, a previsão, a astúcia, a cautela, a introspecção – nesse esforço supremo para vencer ao não menos que “odiado rival”. Que mais se pode pedir de um só jogo? Só que, na vida real a história é diferente.
1) SUPÕE-SE QUE O XADREZ ENSINA CONTROLAR TEMPERAMENTO
Consta que Guilherme, O Conquistador, antes de sua entrada na Inglaterra, perdeu um jogo contra o príncipe de França, o futuro Felipe I, pelo que golpeou o príncipe na cabeça com o tabuleiro.
2) O XADREZ CONTRIBUI PARA A FELICIDADE DOMÉSTICA
Já é clássica a velha piada que circula nos clubes de xadrez e que conta que, certa noite, um dos sócios chegou, um tanto sério, e comentou: “Minha esposa me deu um ultimatum. Ou ela ou o xadrez. E... bem, aqui estou”.
O Conde Ferrand de Flandes perdeu a batalha de Bouvines, em 1214, contra o rei Felipe Augusto. Este o prendeu nos calabouços do Louvre. Sua esposa deixou que apodrecesse ali durante onze anos, tudo por causa de uma disputa de xadrez!
No clube Capablanca comenta-se uma trágica noite de xadrez. O marido de uma mulher tinha por hábito apresentar-se para jogar todas as noites, sem falta, e nos fins de semana ainda inscrevia-se nos torneios. Num sábado, a esposa irrompeu no clube durante um torneio, plantou-se frente aa mesa de seu marido e num só gesto esvaziou o tabuleiro. Depois jogou a mesa no chão e saiu raivosa. No silêncio constrangedor o pobre homem observou, mudo, os escombros, olhou para o adversário, levantou-se e saiu. Nunca mais ninguém tornou a vê-lo.
3) O XADREZ CONTRIBUI PARA O AUTÊNTICO ESPORTISMO
No século XVI, Ruy Lopez recomendava que o rival sentasse de frente para a janela, para que gozasse melhor da paisagem e para que, de resto, a luz do sol lhe batesse à cara.
Quando um homem perde uma partida, sorri docemente e exclama: “Boa jogada, meu amigo!” Isto o transforma num dos mais descarados, hipócritas e mentirosos do mundo, porque não existe um enxadrista derrotado cujos olhos não brilhem de raiva.
Os perdedores no xadrez odeiam seus rivais.
Niemzovich gritava: “Por que hei de perder para este imbecil?”, ao mesmo tempo em que arremessava uma peça contra a parede do outro extremo da sala.
Alekhine costumava suspender as partidas de “pingue-pongue” quando seu adversário aproximava-se dos 20 pontos.
4) O XADREZ ENSINA ESTRATÉGIA MILITAR
Napoleão movia as peças do xadrez. Não é certo que jogasse, porém movia as peças.
Carlos XII, da Suécia, era um gênio militar, mas, como rei, gostava de mover sempre a dita peça, com péssimos resultados, e é duvidoso que alguma vez tenha ganhado alguma partida.
Clausewitz, autor de um dos maiores livros sobre a arte da guerra, perdeu sete partidas consecutivas para um menino de onze anos.
5) O XADREZ ABRILHANTA A ARTE DE PEDIR DESCULPAS
Nunca, jamais na história do xadrez, existiu um perdedor que não tenha apresentado uma desculpa, antes ou depois da partida. A cabeça dói. A mulher está doente. A bolsa de valores está em baixa. Não dormiu na noite anterior. O quarto é demasiado quente. E demasiado frio. A iluminação não serve. Esqueceu os óculos.
O mestre inglês Blackburne declarou certa vez que nunca havia vencido um homem são. O grande Niemzovich, durante um torneio, queixou-se do charuto que seu adversário tinha na boca: “Vamos, Senhor Niemzovich” , disse o diretor do torneio, “se nem sequer ele o acendeu!”
“Sim, mas ameaça fazê-lo”, desesperou-se Niemzovich.
Janowsky se queixava sempre. Quando foi convidado para um torneio em Nova Iorque, os organizadores, que conheciam esta “peculiaridade” de Janowsky, trabalharam com afinco em busca da perfeição. Depois de inspecionar tudo, Janowsky gemeu: “Vocês me privaram intencionalmente de todas as minhas desculpas. Como vou agora poder me concentrar no jogo?”.
6) O XADREZ ENSINA COMO NÃO SER ARROGANTE
Capablanca, então campeão do mundo, disse: “Sou o maior jogador de xadrez vivo" (pouco depois perdeu um torneio).
Najdorf disse, em 1947: “Serei campeão do mundo” (todavia não foi).
Janowsky, jogando contra Reshevsky, de 13 anos, comentou com a imprensa: “Este menino entende tanto de xadrez quanto eu de galinhas” (perdeu a partida).
7) O XADREZ NOS ENSINA A TER COMPAIXÃO.
Havia um jogador, chamado Loschensky, que não admitia que seu rival se rendesse antes do mate. Loshensky se dispunha a fazer qualquer coisa para que seu adversário prosseguisse com o jogo até o inevitável fim. Adularia, suplicaria, ameaçaria, recusaria deixá-lo abandonar a partida, até faria más jogadas e conversaria bastante para manter ocupado o espírito decaído do adversário.
Sua vítima predileta era um homem melancólico, triste, chamado Palitzsch. Era o tipo do perdedor ideal: não só perdia invariavelmente como também emitia uma série de gemidos que aumentavam à medida que se aproximava do final da partida.
Uma tarde em particular seus gemidos eram notavelmente agudos, pois sofria realmente de dores muito fortes de apendicite.
“Doente? Ora, não estás doente”, grunhiu Loschensky. “É tua posição que está mal. Joga!”.
“Minha posição? Mas está completamente perdida”, gemeu Palitzsch.
“Não, não está perdida”, disse Loschensky, suavemente. “Anda, joga, meu caro”.
“Estou doente”, murmurou Palitzsh, apertando a barriga, "muito doente. Eu me rendo”.
“Doente!” gritou Loschensky. “Pode ganhar! Olha!” E efetuou uma má jogada.
Palitzsch chegou a reanimar-se, mas logo ficou esverdeado.
“Estou doente mesmo, realmente, estou muito doente. Me rendo”.
“Não estás, joga, vai...”
Suando frio, rangendo os dentes Palitzsch fez um movimento no tabuleiro.
“Estou quase morrendo...”
“Não”, grasnou Loschensky, “podes ganhar ainda. Joga!”
Palitzsch mexeu a peça, se sentido muito mal.
“Estou perdido. Me rendo”.
“Joga! Uma jogada mais! Joga!”.
Palitzsch executou a jogada final e cambaleou na cadeira.
“XEQUE-MATE!”, anunciou Loschensky. "Meu Deus, homem, estás muito doente. Vem, vou te levar para um hospital”.
Todo dia é dia de sabedoria popular, de crenças, superstições, ditados, lendas, ritos, maldições,tabus, rezas, histórias e mitos.Todo dia é dia de artesanato, música, teatro e literatura populares, festas e jogos tradicionais, dança e cantigas de roda. Todos os dias são talismãs e amuletos.
Os dias são folclóricos, e o folclore brasileiro é rico em crendices e manifestações, em usos e costumes, em histórias que correm de boca em boca, que passam de pai pra filho, pulam fronteiras, mudam de cor, de gesto, de palavra, aumentam um ponto, sobrevivem sempre. O povo canta, dança, reza e maldiz, trava a língua, cura e enterra e faz versos, faz repente, embolada, ligeira, desafio, literatura de cordel.
E esse folclore, que é tudo quanto o povo faz, pensa, sente, sofre, aprende, muitas vezes é suplica nos olhos, mímica de esmolador, reza pra aplacar a seca, dança pra fazer chover, feitiço da pedra em pão, poesia de chamar a atenção. No solo ou no desafio, uma voz são muitas vozes. Que folclore é a voz do povo que é a voz de Deus, num solo ou num desafio. Como neste canto de Patativa do Assaré. (xenïa antunes)
SEU DOTÔ ME CONHECE?
Seu dotô, só me parece
Que o sinhô não me conhece
Nunca sôbe quem sou eu
Nunca viu minha paioça,
Minha muié, minha roça,
E os fio que Deus me deu.
Se não sabe, escute agora,
Que eu vô contá minha história,
Tenha a bondade de ouvi:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasil.
Sou aquele que conhece
As privação que padece
O mais pobre camponês;
Tenho passado na vida
De cinco mês em seguida
Sem comê carne uma vez.
Sou o que durante a semana,
Cumprindo a sina tirana,
Na grande labutação
Pra sustentá a famia
Só tem direito a dois dia
O resto é pra o patrão.
Sou o que no tempo da guerra
Contra o gosto se desterra
Pra nunca mais vortá
E vai morrê no estrangêro
Como pobre brasilêro
Longe do torrão natá.
Sou o sertanejo que cansa
De votá, com esperança
Do Brasil ficá mió;
Mas o Brasil continua
Na cantiga da perua
Que é: pió, pió, pió...
Sou o mendigo sem sossego
Que por não achá emprego
Se vê forçado a seguí
Sem direção e sem norte,
Envergonhado da sorte,
De porta em porta a pedí.
Sou aquele desgraçado,
Que nos ano atravessado
Vai batê no Maranhão,
Sujeito a todo o matrato,
Bicho de pé, carrapato,
E os ataques de sezão.
Senhô dotô , não se enfade
Vá guardando essa verdade
Na memória, pode crê
Que sou aquele operário
Que ganha um nobre salário
Que não dá nem pra comê
Sou ele todo, em carne e osso,
Muitas vez, não tenho armoço
Nem também o que jantá;
Eu sou aquele rocêro,
Sem camisa e sem dinhêro,
Cantado por Juvená.
Sim, por Juvená Galeno,
O poeta, aquele geno,
O maió dos trovadô,
Aquele coração nobre
Que a minha vida de pobre
Muito sentido cantou.
Há mais de cem ano eu vivo
Nesta vida de cativo
E a potreção não chegou;
Sofro munto e corro estreito,
Inda tou do mermo jeito
Que Juvená me deixou.
Sofrendo a mesma sentença
Tou quase perdendo a crença,
E pra ninguém se enganá
Vou deixá o meu nome aqui:
Eu sou fio do Brasil,
E o meu nome é Ceará.
O poeta popular Patativa do Assaré (Antônio Gonçalves da Silva) nasceu em Assaré, Ceará, em março de 1909. Aos 12 anos freqüentou por seis meses a única escola de sua vida e aos 16 comprou uma viola e pôs-se a cantar. Faleceu em 8 de julho de 2002, aos 93 anos, em Serra de Santana, Assaré, sua terra natal.
Brasília foi chamada de “a cidade dos burocratas” pelo escritor Márcio de Souza, de "cidade construída para o filme Contatos Imediatos do Terceiro Grau" pelo falecido humorista Henfil e ainda mereceu de uma revista, um caderno especial intitulado A Ilha da fantasia, com a chamada na capa: “Brasília fica no Brasil?”
Aliás, quase todos os escritores e artistas que por aqui deixam suas diversas marcas não se controlam e emitem destemidos diagnósticos sobre uma doença chamada capital federal. Para Henfil, por exemplo, Brasília é resultado de uma febre alta de Nonô, delírio de grandeza mesmo. Para o dramaturgo Dias Gomes a cidade estava terrivelmente associada à censura, tantas vezes imposta à sua Sucupira. Enfim, de modo geral, para todos aqueles que são premiados com a inevitável pergunta: "o que você acha de Brasília?", as respostas parecem ser de um inconsciente coletivo se repetindo em entrevistas individuais: Brasília é fria, monótona, vazia, distante e poderosa. Eis o xis da questão: com todo o simbolismo de sua arquitetura, de sua construção e sua razão de ser, Brasília está visceralmente ligada ao Poder. E esse Poder tem pesado, diga-se que injustamente, sobre dois milhões de habitantes, como se todos, meros inquilinos desta cidade, estivessem no mesmo barco, usando os mesmos remos e indo na mesma direção. Pior: como se fossem os donos do barco.
Sem bairrismos e tradições de quatrocentos anos para defender, que ao menos se faça saber por aí que a existência candanga não goza de privilégios da corte nem priva das amizades excelentíssimas e potentíssimas. Candango é candango, ou seja, povo, aqui em Brasília, é o mesmo que já foi cheirado em outro lugar. Completamente errado, pois, dizer que Brasília é a Ilha da Fantasia, sem pobres, sem desemprego, sem problemas de saúde pública, de violência, de marginalidade. Sem povo, enfim, com seus peculiares anseios, carências e manifestações. Mesmo no Plano Piloto, que foi mostrado num bem cuidado diagrama da ilha como se fosse um boeing jumbo superluxo, a roupa usada ainda é a da classe média, tipo paletó-e-gravata de oito às seis, e camiseta e jeans para freqüentar supermercados, universidades e outros lugares nada palacianos. De passagem, informo aos navegantes que os relógios daqui são tão falsificadamente suíços como nos outros estados (compra-se na feira dos importados) e que a semana reproduz o calendário vigente com fidelidade - tem sete dias, cinco deles destinados ao emprego ou ao trabalho. Onde se lê trabalho, leia-se povo trabalhando de segunda a sexta, de oito às seis, no mínimo. Muitas vezes, é claro, o povo excede: dá plantões de utilidade pública e ainda usa e abusa de bicos.
A idéia de corte sugere dezenas de milhares de súditos de boa linhagem e alguma fortuna disputando favoritismos, tecendo intrigas políticas reais e irreais e corrompendo desenfreadamente. A corte, na verdade, não passa de idéia megalomaníaca usada como fachada que serve para esconder os desmandos dos mesmos de ontem, hoje e sempre colunáveis do Poder. São estes as próprias colunas que sustentam sonhos de poder e opulência – sim! – mas às custas do pesadelo ininterrupto de quase dois milhões de pessoas. Pois a Ilha da Fantasia – ou corte – é mordomia de minoria.
O povo daqui é o mesmo dali e dacolá. Temos até o povo classe média, que habita as duas asas do imaginado boeing luxo, com montes de problemas parecidíssimos, senão idênticos, aos de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte etc. Na Asa Sul existem prédios e até pardieiros por obra e graça de intempéries e de uso, muito uso, apelidados carinhosamente de jotakás. Ainda na Asa Sul, que segundo a matéria Ilha da Fantasia abrigaria somente funcionários do primeiro escalão do governo e dirigentes de estatais em excelentes apartamentos triplex, moram dezenas de milhares de pessoas normais, trabalhadoras, humanas e intensamente vitimadas pelos descalabros econômicos da corte, em apartamentos monoplex mesmo. Na Asa Norte, o quadro é praticamente o mesmo e a diferença do padrão fica por conta de sua ocupação e ativação mais recentes. Nesta asa do “aviãozinho” moram também profissionais liberais e militares, e outros trabalhadores igualmente solicitados e necessários, devido ao tipo de serviço que prestam à comunidade, como mecânicos, eletricistas, secretárias, etc.
Quanto ao Lago Paranoá, que muitos querem ver Baía da Guanabara na altura de algum porre, foi especulado imobiliariamente assim como os bairros de Ipanema, Leblon e outros da ex-capital. Há mansões, pois, em estilos colonizado, espacial ou mediterrâneo, arquitetadas nas pontas de picolé e penínsulas, onde habitam pessoas de todos os valores (e princípios). Diga-se de passagem que há nos bairros Lago Sul e Lago Norte construções de e para todos os gostos, com uma certa prevalência para o mau gosto, batizado de modernível (moderno e horrível), mas isso é outra história.
Sobre a periferia, basta dizer que a miséria daqui se define em linhas horizontais da mesma maneira que se define em linhas verticais no Rio de Janeiro. São as favelas. Existem, sim, Muitas. Planas. Longe dos olhos e do nariz da corte. Algumas já bem perto do nariz da corte. Tudo por decisão da corte.
Ilha da Fantasia? Onde, meu irmão? Os privilegiados que buscam tal paraíso vão curtir feriadões e férias nas ilhas e cidades praieiras como Guarujá, Ubatuba, Angra, Búzios. Sempre foi assim. Ou estou mentindo? A maioria das pessoas de lide diária e pouco poder econômico, não podendo aportar em nenhuma ilha de verdade, no muito passeiam pelo centro da cidade – o bojo do “avião” – num ritual bastante provinciano de caldo de cana com pastel na rodoviária, piquenique no Parque da Cidade, namoro na Torre de TV e uma olhadinha nas cataratas do Palácio da Justiça. A classe média vai aos shoppings (não ao paraíso).
Portanto, assim como o Ceará, Brasília fica no Brasil e tem cara de Brasil. Incontestável fato (Geografia de Bêbado).
Brasília é o melhor lugar para se investir em disco voador. Para loucos, poetas, músicos e místicos esta cidade oferece redutos para criação, amor e boêmia, com direito a um espetacular e gratuito pôr-do-sol. O resto é conseqüência dos absurdos políticos, econômicos e sociais sempre vigentes.
Antes de inventar o telefone, Alexandre Graham Bell inventou o trote. Não posso, a bem da verdade, afirmar que, já naquela época, ele freqüentasse os botecos do Rio de Janeiro, nem tampouco detectar um intercâmbio colorido de idéias geniais entre o inventor e o Stanislaw Ponte Preta. Mas que ele antecipou o trote ao telefone é mais que óbvio. E deve ter cedido todos os direitos de especulação e aperfeiçoamento ao povo carioca que usou, abusou e exportou o trote.
Claro que não estou me referindo àqueles trotes grosseiros, de procedência evidentemente bandida e que na realidade não são trotes, e sim crimes ecológicos que tencionam poluir ouvidos com baixarias de mil decibéis. Estou falando é do trote como gozação, brasileiramente institucionalizado, irresistível e não identificado
A maioria das pessoas já recebeu pelo menos um trote na vida. E muita gente deve ter agido com reciprocidade. Uma vez um amigo meu recebeu um recado para ligar para o Dr. Leão, num determinado número. Este meu amigo estava sendo perseguido por credores, pessoalmente ou através de telefonemas, e vivia em clima de terrorismo psicológico, completamente paranóico. Apavorado com o recado recebido e com o nome ameaçador da pessoa para quem deveria telefonar, este meu amigo criou coragem, discou para o número anotado e perguntou pelo
Dr. Leão. Não deu outra: com sonoras gargalhadas responderam que era do zoológico e que o Dr. Leão estava dormindo! Eu já recebi inúmeros trotes, inclusive aquele famoso, da voz empostada de locutor de jornal nacional: “Boa tarde, minha senhora. Aqui é da Transbrasil. A senhora acaba de ganhar uma passagem para a +*&¨%#¨...
E o do Valdemar? Um dia que ligaram para minha casa mais de dez vezes, sempre perguntando pelo Valdemar. Da infinita paciência à irritação, respondi dezena de vezes que não tinha ninguém com esse nome em casa, que estavam ligando para o número errado, favor consultar a lista ou a telefonista. Depois de um dia inteiro de insistentes telefonemas procurando pelo Valdemar, novamente a campanhia do aparelhinho soa, desta feita em hora noturna que rima com inoportuna. Atendi. E, antes que eu dissesse que o Valdemar não estava, que ele tinha viajado para a Austrália para estudar a vida sexual dos cangurus, a voz falou: “Aqui é o Valdemar. Tem algum recado para mim?”
Mas como estamos em plena capital federal e não no mesmo barco, me acontece, num início de madrugada à toa, ouvir um estranho trotista passando um estranho trote. Assim que disse um preocupado “alô” (Quem seria? Quem morreu?) a voz respondeu apenas: “Não sou nada/nunca serei nada, não posso querer ser nada”.
Perguntei quem era, qual era? Até pensei que fosse algum amigo no auge de uma bebedeira ou à beira do suicídio. Quem era, afinal? E a voz falou, ritmada e melódica como flauta doce: “Que sei eu do que serei/ eu que não sei o que sou?”
Ora, era o poema Tabacaria! Alguém me recitava Fernando Pessoa, alguém me escolhera para ouvir os versos, as clarividências do poeta. Ai, agonia! “Ser o que penso?/ Mas penso ser tanta coisa!”, a voz prosseguia. E eu me rendia ao anônimo trotista que me revelava solidão ou maya, em uma entonação mais grave que usava para repetir: “Não sou nada”.
Pensei no som do universo, depois na música do Ivan Lins – somos todos iguais esta noite. Tive receio de perguntar o nome do trotista, o telefone da voz e perder-me do encanto. Meus olhos procuravam nas estantes o livro de Pessoa, aquela bíblia das edições Aguilar, enquanto meu pensamento voava em busca da minha memória.
Até que minha voz falou, angustiada e feliz:
“Antes o Nada, ó gérmen, que ainda haveres de atingir como gérmen de outros seres/ ao supremo infortúnio de ser alma!”
Recitei, sim, como Augusto dos Anjos o faria se tivesse ouvido Tabacaria na voz do próprio Fernando Pessoa!
Seu nome verdadeiro era Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Quando completou 95 anos, ela disse: “venho do século passado e trago comigo todas as idades do mundo”. Morava na Casa Velha da Ponte, às margens do rio Vermelho, e sempre recebeu, gentil, todos que a procuravam em Goiaz Velho, sua cidade natal. Cidade de pedras angulares, de paralelepípedos que acolhem românticas pantomimas de violinos e luares, as sombras móveis e noturnas de seus habitantes projetadas nas paredes das casas, antigos mognos emoldurando janelas e donzelas, a Santa Bárbara ano inteiro, Iansã adormecida e bela, e todas as cores da serra inventando um cenário de natureza caprichosa. Nessa cidade, as mãos de Cora Coralina trabalharam o pão, o açúcar e o verso:
De pedra foi o meu berço.
De pedras têm sido meus caminhos.
Meus versos: pedras quebradas no rolar
E no bater de tantas pedras.
Eu sei que foi assim. Sei que a sua flor nasceu da pedra. Sei que da pedra vieram doces brancos, sob a forma de bichinhos, esbeltos cisnes. Sei que retirando as pedras ela descobriu a terra e que na terra suas mãos cumpriram a semeadura, o plantio, a colheita. E até alegraram-se quando dos bananais surgiram eternos confeitos adoçados.
Cora Coralina. Nossa Senhora Feminina, anti-imagem tanto de belle-époque, quanto de televisão-mulher, dona de hábeis e preciosas mãos: só o que lhes iguala é a morte. Suas mãos, pequeninas e frágeis para carregar pesados estandartes, mas que cavoucaram a terra, amassaram o trigo, varreram, cozinharam, lavaram. Mãos fortes que abençoaram filhos, “mãos domésticas e remendonas”, que escreveram estórias dos becos de Goiás e poemas do seu ventre de mulher.
Mulher, eu disse. De fibra e de pedra e milenar sabedoria, com seus olhos espiões que vieram do passado para transmitir a luz das suas experiências de vida. E foi esta mulher de porte miúdo e alguma vaidade na voz quem me disse: “A mulher tem que agradar o seu homem, até levar-lhe os chinelos quando ele chega em casa...”. Não me espantei. A lição é de Cora Coralina, que nasceu antes da poesia e de qualquer feminismo. Sua luta foi só trabalho, e nem por melhor salário, mas por amor ao trabalho, ao companheiro de jornada. Fazer um doce, buscar um chinelo, nada aviltaria a dignidade de uma Cora Coralina.
“Meu companheiro de vida será um homem corajoso de trabalho, servidor do próximo, honesto e simples, de pensamentos limpos. Seremos padeiros e teremos padarias.”
Não, a vida não se desgovernou nas mãos de Cora. Pelo contrário, ela soube muito bem exercê-la e a todos os seus direitos – humanos, políticos e poéticos – e destinar-se, por vontade própria, a ser uma simples, humilde, madrugadora mulher, cuja fé – a pedra imóvel - ajudou a viver e a crescer.
Na literatura, talvez ainda apareça o lugar de Cora Coralina junto a Clarice Lispector e Cecília Meirelles. Cora, que na história vejo como Maria Bonita, coiteira de Lampião; que na sociedade faria a independência dos oprimidos, sabiamente, como o Mahatma fez na Índia. Cora, que no universo está muitos anos- luz adiante de nós, mais perto de seu criador.
Das muitas sabedorias de Cora Coralina, o que mais me surpreende são os segredos desvelados em sua poesia, mistérios da natureza que ela nos traduz em pura realidade. Assim é no poema A Flor, em que ela conta a "maternidade da terra”; em Pão-Paz, poema dos mais universais, onde a trajetória da esperança do alimento começa nos trigais para terminar em todas as mesas. Cora nos revela, cristicamente, o pão.
Raízes, sementes, a terra, o pão, a flor. E as pedras:
"Entre pedras que me esmagavam, levantei a pedra rude dos meus versos."
É outubro,
Drummond!
“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.”
Habitam a casa os de outubro, que sussurram idéias atraentes onde não cabe uma boa noite. O poeta está impaciente.
Escrever, mandam os de outubro; obedecem os outubristas.
Escrever a decisão dos astros, por adoração a Vênus, por humanidade, por valentia e fuga, ousadia e retraimento, por sofreguidão e mil paixões escondidas, as cartas abertas e decididas, corpo e espírito batizados, crismados, um destino só por desígnio: escrever. Por amor à arte e por vingança, numa missão de cumprir a herança conferida, escrever, ainda e sempre, os que vivem aqui ou acolá, escrever alguma coisa profunda e louca, áspera, musical ou de verdade à tona, que ecoe pela eternidade toda a poesia que existe nas palavras.
Vinícius de Moraes, Mário de Andrade, Dostoievski, Nietzsche, Oscar Wilde, Rimbaud: todos retornam no mês de outubro e colocam ordem nos papéis da escrivaninha, rabiscam uma senha, uma sentença ou discurso num pedaço de kraft que não queria ser nada.
Caso que mexe com meus nervos – minha vagotonia de outubro – o plácido poetar de Drummond, silenciando depois que o verso é raio de céu, pergunta no ar (e agora ?), domingo sem fim nem começo, um homem que vai devagar, a casa que se enverga, bêbada.
Carlos, por que não me respondes? Em que mundo, em que total da parte do zodíaco tu te escondes? Há dois mil anos te mandei meus versos, todos os dias desde então me vence a majestade estética de teus versos, onde estás, Carlos Drummond?
Mas amanhã é o último dia de outubro, é quando tu me respondes que foste apanhado também. Sofres (e gozas) de outubrismo, bem sei. Vives de praticar iluminamento, de oferecer os anéis de cor dos astros que dominas, de fazer reverberar o poema com o raciocínio e a libido da inconstante língua neolatina, de expor os sentimentos, página por página, a habilidade das artes gráficas.
E é assim que és o nascedouro do 31 de outubro em que nasceste.
Pois vive, Drummond, que este tempo é pouco e uma idade só não basta pra se ter certeza – e que importam a idade ou o tempo quando se tem a musa?
Vive, Drummond, que daqui a pouco será outubro de novo. E sempre haverá outubros e todos os estados de espírito e os seus dias certos. Sempre haverá encontros marcados com poetas, filósofos, libertadores.
Vive, Drummond, ordenando ou decompondo as palavras com naturalidade de excelência no oficio e a revelada promessa de um avesso imortal, a liberdade maior de todas.
Vive, Drummond, apesar da câimbra de escritor, do angustiamento que faz hibernar um urso polar, da alopsique, da acentuação tônica que embarga a voz do poema, do ponto inevitável no final da linha.
Parabéns, Drummond, por todos os seus aniversários de outubro. Morrer, você bem sabe, é fingimento de poeta.
Assim era a pichação em Brasília
Não adianta querer descobrir quando, como e quem começou a pichar o branco-cinza de Brasília. O que importa, agora, é a gente aprender a conviver visual e psicologicamente com as pichações, já que não há apagadores com fôlego suficiente para conter tantas mentes e corações armados de pincéis e tintas e outros materiais mais velozes na elaboração dessa arte de rua. O que importa mesmo, nesta altura de tantos campeonatos perdidos, é transar bem um sistema de recepção, compreensão e decodificação que nos auxilie na leitura de tantas palavras que encerram essas mensagens, das mais sutis às mais óbvias.
Se o leitor, "enquanto está" pedestre, transeunte, motorista, ciclista ou atleta quiser se aprofundar no conhecimento da arte da pichação poderá acrescentar ao seu sistema de observação uma boa dose de grafologia, o que lhe ajudará a reconhecer (não identificar) o autor daquele picho.
A frase quem ama não mata foi escrita em toda Brasília. E tudo sugere que tenha sido obra de um único autor - um passional arrependido, aguardando julgamento em liberdade? Feminista militante do SOS Mulher? Um dos lados de algum triângulo amoroso se precavendo, doutrinariamente, de uma vingança siciliana? Ou será que seu autor queria somente que todos compreendessem que quem ama desqualifica a tese de legítima defesa da honra e parte para o diálogo sincero?
Em outra parte da cidade, num extenso muro amarelo, outro anônimo pichador escreveu: Procuro gente vil, não heróis de sonhos. Esta era intrigante: seria crise de adolescente? Um dos poetas marginais? Ou um funcionário público exemplar em véspera de aposentadoria? Mas não deixava de ser um recado: alguém está procurando alguém porque não está satisfeito com o alguém que tem. Se for coisa de foro íntimo, o apelo é singular e deve ter endereço certo. Se for assunto de filosofia ou de ideologia a mensagem pode estar truncada.
Mas os preferidos para pichação eram os viadutos, principalmente aqueles revestidos de mármore. Numa cidade sem out-doors, nada mais chocante que tinta preta e letras garrafais nas paredes dos viadutos. Todo mundo olha. Todo mundo vê. Acho que uma das primeiras frases que apareceram nesses viadutos foi a do Jari, quero por o pé aí (alguém ainda se lembra do caso Jari?) Depois dessa vieram dezenas: agressivas, políticas, poéticas, libertinas, promocionais de esquerda, de centro e de direita, pornográficas, de maiorias e minorias oprimidas. Houve até quem escrevesse As Malvinas são argentinas, num viaduto da Asa Norte, e As Falklands são inglesas, num viaduto da Asa Sul. O pichador primou pela elegância diplomática e astúcia política.
E de repente a cidade ficou repleta de muros e paredes pichados: Explode coração, Eu te amo, Fulano ama fulana, Choveu rabisco etc. E mais deduragens amorosas, revelações de mau gosto, desenhos e pinturas cabalísticas e apocalípticas e uma tal de Zecarlosmania, auto promoção que ainda deve estar rendendo lucros, dividendos e provavelmente filhotes!
Mas a mais incrível, chocante, despudorada, agressiva e confessional foi uma pichação escrita em letras gigantes, em uma parede do tamanho de duas telas de cinema, estrategicamente situada em uma viaduto da Asa Sul, à frente de quem quer que passasse por aquelas bandas, inevitável de se olhar e totalmente impossível de fingir que não se entendeu.
Creio que em tinta vermelha ( ou era preta?) e no calor do momento, a mão pichadora foi lá e trabalhou acintosamente na construção da sentença que, substancial e objetivamente nada mais era que um confissão pública, dirigida à própria mãe - do autor(a), é claro - de que havia cometido arbitrariamente um rendimento incondicional: "MÃE, DEI E..."
...e, no intuito de exasperar ainda mais as mães de Brasília, o autor(a) acrescentou, após uma belíssima conjunção coordenativa aproximativa, o verbo conjugado: ..."GOZEI".
Há dois anos deparei-me com um par de tênis, estrategicamente exposto em uma vitrine esportiva, olhando com o maior sex appeal para o meu olhar consumista embasbacado. Eu estava em plena crise de lesa-economia-doméstica-para-suprir-carência-afetiva. E ele, o singular tênis, oferecia por 14 contos brasileiros (divididos em duas parcelas, um pé por mês), toda uma filosofia de vida. Que começou a funcionar quando notei que ele se integrava gracinha ao meu jeans enrugadinho e minha camiseta estampada de Marilyn Monroe.
Então, perdidamente seduzida, ouvi o canto da sereia do maior vendedor do mundo, que se pôs a exaltar as qualidades, mistérios e segredos do tênis. Caí, definitivamente e de cara, pelo design futurista arrojadíssimo, tipo ninguém-segura-minha-alegria: linhas exclusivas, formato super anatômico, solado de látex reforçado com áreas de giro, base antideslizante, reforços de borracha nos pontos de maior atrito, palmilha amortecedora dupla, revestimento de nylon dublado com espuma em cima de um couro acamurçado di-vi-no.
Seu desenho trazia, ainda, outros traços marcantes de personalidade, além de uma linda biqueira de couro. Mas o que me ganhou mesmo foi a ausência daqueles ilhoses de ferro e seus emaranhados cadarços. No lugar dessa complicação ele tinha um incrível, fascinante e evoluidíssimo acessório da espécie tecnológico-esportiva: fechos magnéticos. Isso mesmo, fechos magnéticos, aqueles dos “barulhinhos de biblioteca”, de sensação rasga-coração.
Vencida, enfim, fechei a compra, paguei o primeiro pé e inaugurei o tênis. Foi a maior visão do futuro que já tive com os pés no chão. Deixei a loja absolutamente calçada em minha nova filosofia de vida,o próprio sucesso, três sets a zero, medalha de ouro nas olimpíadas do Eixão do Lazer, autógrafo do Renan, selo de garantia internacional, pura emoção.
Um raro prazer, campeoníssimo.
Durante alguns meses vivemos em romance, ele sempre dando o primeiro e bom passo (o que deixaria minha avó muito feliz, se estivesse viva). Ele me levou para o Movimento Verde, galerias de arte, livrarias, bibliotecas, clubes, parques, zoológico, restaurantes naturais e churrascarias, maratonas e danceterias, e minha fé no seu conhecimento de trânsito e transporte pessoal jamais foi abalada. E isso com um natural look de fazer inveja às madames e seus poodles.
Ruas, estradas, asfalto, paralelepípedos, curvas perigosas, desníveis e quebra-molas, tudo isso para ele era liderança, dinamismo, ousadia, maior ataque, mais impulsão.
Resistimos heroicamente às tentações do mercado. Esnobei um escarpin vermelho e uma sandália dourada. E mesmo assim freqüentei demais com o meu must of tennis, sintonizando amor e cor e umas roupinhas bem à vontade – que eu jamais o afrontaria com as tétricas calças fuseau ou collants apertadíssimos. Eu e meu tênis (neste momento pintou um ato falho, já revisei) sempre combinamos em tudo: camisas chambray, jeans délavé stone washed, meias transadas e jaqueta de nylon cirê 100% poliamida acolchoada.
Em dias de fazer mais chique, acrescentava ao visual determinado pelo tênis um jeans clear com camisa de linho e um agasalho soft com cachecol da Noruega. Ou então um moleton Índigo Katmandu e as tais meias transadinhas. Tudo em inglês, para ele entender.
Sempre cuidei muito bem do meu tênis. Meus pés eram tratados com creme removedor de pele dura para acabar com as asperezas. E um talco especial anti-chulé do Dr. Scholl. Para ele, banhos semanais com shampoo de ervas e um condicionador de gérmen de trigo para garantir sua flexibilidade, maciez e excelente desempenho que, diga-se de passagem, sempre me deu prioridade em tudo e vantagens progressivas, além de facilitar minhas reações químicas.
Dia desses passei pela loja onde o comprei. Na vitrine, um tênis irmão de série, novinho em folha, prepotente (outro ato falho, sorry), atletíssimo. Um baque na minha fidelidade, plenamente restabelecida assim que vi a etiqueta com o preço: 214 contos!).
Corremos, eu e meu tênis, para casa, para a cama. Nunca o amei tanto como naquele dia, o dia de sua supervalorização. Dei-lhe um trato especial, fiz mil honras. Prometi evitar qualquer tipo de rallye com a polícia e beijei seu colarinho ainda acolchoado. Bom tênis, pensei. Para a vida toda. 214 contos brasileiros, imagine! E em dólar, câmbio oficial? E no paralelo?
Passaram-se dias de intensa lua-de-mel.
Hoje acordei às 10 da manhã, para escrever uma crônica para o jornal. Procurei o par de tênis debaixo dos meus sonhos, digo, da cama. Não estava ali. Procurei nos armários, procurei pela casa toda, nos esconderijos dos gatos, do cachorro. Nada. Sumiço geral. Parti para uma investigação e interroguei os suspeitos. Todos tinham álibis perfeitos. Menos um dos meus filhos pré-adolescentes, o de número 36. Bingo.
O imberbe e meu tênis foram caçar lagartos, fazer bicicross e localizar corujas buraqueiras no cerrado. Voltaram ambos em estado lastimável, o tênis indo direto para a máquina de lavar e depois para o forno, e o menino para o chuveiro.
Meu tênis morreu por centrifugação e queimaduras de terceiro grau. O menino sobreviveu e disse para eu não comprar mais tênis com "carrapicho" (fecho magnético), pois estava ultrapassado. Sugeriu um tal Comander, que funciona também como antidepressivo.
Estamos em plena crise. A poesia passou por aqui e disse que é preciso fazer arte, urgente, antes que a esfera arrebente. Seja arte de pintar levianas cores em caras-pálidas, seja um concerto de flauta, oboé, clarinete e fagote na praça que jamais será um forte!
É hora de retirar sonetos sonolentos do baú das reticências para um recital ao ar livre, com pantomima e violino, quando do alvorecer em todos os bares e em todos os bêbados.
É hora de usar as atraentes máscaras que tornam as alcovas mais convidativas, para que a revelação das peripécias dos amantes seja a grande epopéia que todo artista fará renascer em milhares de folhetins, necessários neste tempo acontecido.
Uma ilusão é bem-vinda, toda ilusão é vitória. Um amor como se fosse em Veneza, sem restauração, proibido e estimulado, invadido de crise como de festa brava, é um amor que faz bem a toda musa.
Que lápis, papel, mármore ou barro, voz e mímica façam a existencial crise dos que vivem de dever a todos o tudo essencial: o pão, o batom, a água-forte.
Poetas convocados, por merecimento, terão tempo para conceber poemas e amar as tontas, em noites de frio negativo, em verões insuportavelmente quentes, nas quatro estações deste ciclo. Aos poetas pertence esta hora e a poesia os reclama. Os sensíveis saberão o que fazer, e que se danem os isqueiros a gás.
Sim, estamos em plena crise. Poderíamos estar em pleno mar, com um companheiro Castro Alves. A idéia é a mesma: ossos comprimidos, os nervos aflitos, coração sem repouso. Uma fome tanta. Uma crise, e uma crise esteja você onde estiver. Mas sempre há alma que do sistema escape. Que vacinas contra ele existem, mesmo porque de universo ninguém sabe nada e tudo são focos e mundos pequenos.
Sempre haverá quem pinte esta crise, quem escreva, quem cante, quem dance. À revelia de um sentimento de nada, com o peso pesado da impotência a colocar a espinha dorsal à mercê de um dólar, sempre haverá quem diga um verso numa roda de bar, sustentando com os olhos cúmplices os olhares atônitos que freqüentam as madrugadas vazias.
Sempre haverá quem da história faça um romance épico, um gênero capa-e-espada, um clássico de amor com pacto de morte. Ressuscitarão Ema Bovary e Ana Karenina. Será revisto e ampliado o Tratado do Lobo da Estepe, provada a Divina Comédia, entendido o Ulisses como também Macunaíma. E eu recomendarei As aventuras do Barão de Munchhausen ou uma ficção de H.G. Wells. Sempre haverá Clarice Lispector e A paixão segundo G.H.
Lembraremos O Velho e o Mar. Mais adiante retomaremos a leitura de Crime e Castigo, pois as bibliotecas não se fecharão em virtude de crise. Creio eu que nem as livrarias deixarão de nos alimentar o espírito, em troca dos últimos tostões. Lá deixarei os meus pelas Grandes Esperanças, de Dickens, ou pelas Almas Mortas, de Gogol. Lerei todos os livros em busca do tempo perdido.
Porque sempre haverá arte- por toda a dignidade humana! – não importa a náusea que hoje sentimos. Sempre haverá quem tenha um exemplar do Fausto, quem recite Poema em Linha Reta, quem ouça Summertime e até quem dance o rock’n roll.
Por ter dito em poema que escrevi anos atrás que “a fome é a mãe de todos os gênios”, que me perdoem os famintos, eu não sabia ainda. Eu não sabia que a fome do vosso ventre é que é a obra dos gênios. Gênios maus, que lhes determinam a fome por destino e levam ao calvário diariamente crianças vitimadas pela “doença do tempo”, gênios que têm almoço e jantar infalíveis - esses gênios do dólar e do monopólio também me causam fome.
Uma fome do tamanho do meu pensamento, do meu sentimento e da minha racionalidade. Uma fome secular, de milhares de mulheres e suas maternidades que não vingaram, seus filhos que não cresceram. Uma fome de delírios de arroz, feijão, trigo, leite, coalhadas, maçãs e bananas, goiabada e requeijão, como se fossem letras que eu pudesse despachar pelos correios. Uma fome que não é a da solidariedade no câncer, mas a da vergonha por todas as barrigas cheias. E ali, grudada na fome literária, na fome da informação do jornal, na fome dos meios de comunicação, na fome de saber da fome tanta, acusando, lembrando, está a náusea.
Tudo isso – fome, náusea, crise – é pura literatura? Mas a minha realidade, transformada que seja em literatura, não é como uma guerra mundial – não vou ao front, não levo os tiros, mas vivo em um tempo de guerra?
E nós estamos vivendo a fome do Brasil, a do mundo todo, ignoradas as fronteiras do apetite.
Se minhas palavras insinuam uma simples passagem existencial explorando a realidade crônica dos miserabilíssimos, e se fome e náusea são apenas figuras de metáfora usadas para bem marcar qualquer crise existencialista que se preze, por acaso o trivial comum dos ratos e calangos não deveria ser a expressão máxima do surrealismo fantástico tipo Saramandaia?
Leiam a literatura da fome mundial: Mantenha o sistema, de George Orwell; Fome, de Knut Hamsum; A boa terra, de Pearl S. Buck; Ninguém escreve ao Coronel, de Garcia Marquez. A fome brasileira está em Os Sertões de Euclides da Cunha; no Calvário das Secas, de Eloy de Souza; em Fome no Nordeste Brasileiro, de Ivo Patarra; em Geografia da Fome, de Josué de Castro e em dezenas de outros livros, estudos, estatísticas e jornais do Brasil e do mundo. É a literatura que conta em história e números os famintos em sua peculiar geografia.
Os nordestinos morrem de sede e de fome e, talvez, de indignação. A morte pela fome é uma agonia lenta que provoca visões alucinantes, como em um delirium tremens. E não existe sequer a providencial intervenção de uma glicose na veia: há que delirar até o fim. A esperança verde e amarela acena de longe nesses quadros de desvario que antecedem a morte, com o Velho Chico também agonizante. Ou quem sabe não sonham esses flagelados com um rio Nilo de quatro mil anos atrás obedecendo aos desvios que o homem lhe impôs para que irrigasse as terras? Claro, eles, os flagelados, embora não conheçam a história. devem ter sonhos de presciência.
“É melhor morrer mesmo”, disse um flagelado ao repórter, “porque até os ratos acabaram”.
E agora, José? Os ratos acabaram!
Vergonha: 10, 15 milhões de flagelados, são tantos que passam a ser nenhum, anônimos famintos. Onde as novas falas da cruz, as novas leis de Deus para os depauperados? Onde as novas leis sociais, a justiça, a compaixão, a solidariedade? Onde uma humanidade inteira envergonhada?
E para a literatura da fome ou para a fome na literatura registro aqui uma nova metáfora:
“Beber é mentira. A gente dá uma lambida”.
Assim falou Izidora ao repórter.
Cada filho é amado de um jeito
Por Redação AnaMaria postado às 10h43
Gente, não é verdade que os pais sintam amor por seus filhos com a mesma intensidade. Também não procede que homens amem seus filhos como as mulheres. Que ambos amem seus filhos, ninguém duvida. Mas fazem isso de maneira diferente.
E aí estão Raul (Antonio Fagundes) e Wanda (Natália do Vale) para provar que, mesmo em novelas, quem disser que isso não procede, mente. Raul tem clara preferência pelo filho Pedro (Eriberto Leão) que, até então, era o vencedor.
Isso é bem cabeça masculina: adora mostrar o filho bem sucedido, como se ele, pai, estivesse recebendo um atestado de “bom comportamento genético”. E os homens não têm vocação para carregar filho problemático.
Homem não sofre de complexo de culpa, esse departamento é feminino. Veja como Wanda leva seu amor para o filho mau-caráter, com traços de psicopata. Léo (Gabriel Braga Nunes) é tudo de ruim, mas a mãe não vê, ou não quer enxergar. Ela vive pronta para justificar as faltas dele e, mesmo quando ele revelar a ela as maldades de que é capaz, ela achará uma justificativa.
As mães sempre estão ao lado do filho problemático, sensível, fraco. São elas que, de uma forma ou de outra, impulsionam o filho necessitado pra frente na vida.
E também carregam o fardo do filho mau-caráter nas costas como um troféu que as alivia da culpa que nós, mulheres, ainda carregamos. Cada filho é um indivíduo e, de acordo com as suas necessidades, será amado. Temos cinco dedos em cada mão, nenhum é igual ao outro. E assim são nossos filhos.
Os filhos não nos pertencem
Por Redação AnaMaria postado às 10h12
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Gente, nos últimos capítulos de Passione, Bete Gouveia (Fernanda Montenegro) e Candê (Vera Holtz) protagonizaram uma belíssima cena, onde Candê, desesperada ao ver o filho atrás das grades, apela para os sentimentos de Bete, cujo filho morto também era um canalha. As duas perguntam o que toda mãe se pergunta: “onde foi que eu errei?”.
Eu respondo assim: não está na hora de tirar esse peso dos ombros? Não é tempo de admitirmos que somos mães, e não deusas? E, antes de mães, somos mulheres, já existíamos antes de nascerem nossos filhos. Ser mãe não nos liberta de nossos medos, erros, fraquejos e toda a carga emocional que forma uma pessoa.
É preciso aceitar que, se damos à luz nossos filhos, eles não nos pertencem. Sei que é difícil abrir mão dessa “propriedade”, mas veja, o que damos aos nossos filhos é o corpo que um dia irá apodrecer debaixo da terra. O que fica é o mistério, que vamos chamar de alma. O caminho a seguir pertence só ao seu filho. Não adianta interferir ou julgar com sua experiência de vida, pois ela é sua e não serve para mais ninguém!
Pergunta Bete para Candê: “onde é que nós os perdemos?”. Quando eles começaram a escrever a própria história, certa ou errada, não importa. Como mães, nos resta apoiar, chorar e ajudar caso um filho traga na alma uma caminhada dolorosa de erros.
Um filho problemático pode ensinar mais que um certinho. Jogue fora o chicote da penitência, cara leitora. Somos mães, não donas do destino de nossos filhos. Com certeza fizemos o melhor, o resto é com Ele.
Preconceito, eu? Imagine...
As pesquisas mostram que o brasileiro não é preconceituoso. Pura mentira! As pessoas só dizem isso para “sair bem na foto”
Gente, tá tudo muito bom, mas a verdade é que não se pode confiar nas respostas dos brasileiros às pesquisas de opinião. O pessoal mente pra caramba, todo mundo quer “sair bem na foto”! Se o pesquisador pergunta “você tem preconceito de cor?”, a resposta vem em um impecável e politicamente correto: “Euuu? Imagine! Para mim, vale o caráter; não a cor da pele”.
Na novela Duas Caras, chatíssima por sinal, Júlia (Débora Falabella), moça branca e rica, apaixona-se por Evilásio (Lázaro Ramos), negro e pobre. Se tal situação acontecesse com sua filha, qual seria a sua reação? E sua família, como reagiria? Dirá a cara leitora romântica: “Ah, mas eles se amam tanto!”
Quanto tempo, na vida real, pode durar uma paixão com total falta de estrutura? Por favor, não confunda Evilásio com Lázaro Ramos, aqui está em jogo o personagem. O ator é um profissional bem-sucedido e, como se não bastasse, é um lindo representante da raça negra. Ô nego lindo, sô!
O que está em jogo aqui é o personagem Evilásio, que não é portador de um currículo ideal para genro. Então, cara leitora, já se decidiu? Como você reagiria? Aceitaria o genro com todos os problemas que esse casamento acarretaria? Ou seria claramente contra?
Você é uma mulher adulta, sabe que a vida a dois não é fácil. Além dos problemas comuns da vida, o casal ainda terá que enfrentar o preconceito da própria família e da sociedade, que é cruel. Precisa ser muito, mas muito forte, para suportar tudo isso. E tem o que eu considero mais grave: o desnível social e intelectual.
Pra mim, o casamento sobrevive a muitos trancos, até na área sexual. Mas o desnível social e intelectual o derruba. A mulher tem uma necessidade visceral de admirar o seu homem. Se ele não estiver à sua altura, ela começa a sentir desprezo pelo parceiro. Mas, cara leitora, qual foi mesmo a sua resposta?
Um dia a festa acaba
Beleza não segura fama. Nesse mundo de faz-de-conta, enfrentar a real é um baque
Gente, recebo pelos jornais a notícia de que Fábio Assunção, o Heitor da novela Negócio da China, será afastado, e que Thiago Lacerda assumirá o posto de ator principal da novela. Tenho acompanhado, desde bem antes, os problemas de Fábio Assunção.
Dizem que algumas pessoas conseguem olhar um pequeno detalhe e perceber algo que pode causar grandes problemas. Pois eu tenho essa capacidade! Explico: o emocional de Fábio Assunção, que já não estava bem, entrou em colapso durante a novela Paraíso Tropical. Ele seria o ator principal —seria, se no meio do caminho não existisse Wagner Moura, que roubou a cena e fez o Brasil inteiro
torcer pelo mau-caráter Olavo.
Ali, Fábio Assunção sentiu o baque. A realidade é que somente a beleza, por si, não segura a barra. Ele sentiu que a beleza é passageira e que o corpo sofre quando é maltratado. Quando um ator tem 20-e-poucos anos e é lindíssimo, torna-se um galã. Aí, todas as portas se abrem — mordomias e mimos não faltam. Pobre de quem cai nessa armadilha e não estuda. É necessário se preparar para ser um ator e não ser somente uma estampa bonita.
Aos 40-e-poucos anos, Fábio Assunção continua lindo, mas sem o brilho de outros tempos. Antes, atrasos e faltas nas gravações eram relevados. Hoje, já não existe mais a desculpa da irresponsabilidade da juventude. Hoje, é um homem maduro, com papadinha embaixo do queixo e algumas rugas.
Nada disso teria importância se Fábio Assunção estivesse preparado para envelhecer e tivesse enfrentado a realidade da vida. Ele estaria numa boa se não achasse que a festa não acaba nunca. Acaba, sim! E pior: nesse mundo de faz-de-conta, envelhecer é caminho certo para que uma pessoa se
desestruture emocionalmente.
Vejo umas fotos de crianças famintas da Etiópia. E da Nigéria. E da Somália. São tantas. Confiro na alma com outras fotos de outras crianças, as brasileiras, e com outras, de vários lugares. Todas têm em comum a mesma fome. Essas crianças flagradas em seu estado de mínima humanidade não se parecem em nada com aquelas que conhecemos de perto. Nenhuma semelhança com as nossas crianças, com as dos parentes, amigos e vizinhos, com as das escolas, das propagandas de consumo na televisão, dos adesivos dos chocolates, das figurinhas dos chicletes, dos posters das farinhas lácteas, das tabelas pediátricas, do futuro das pátrias.
Não se parecem, as crianças da Etiópia, com aquelas rechonchudas da América do Norte ou as coradinhas dos Países Baixos. A fome desses pequenos seres do Brasil, Angola, Biafra, Somália, Bangladesh, Paquistão, Afeganistão e outros territórios sugere a existência de uma sub-raça espalhada pela terceira face da Terra, apresentada ao mundo em foto-imagens quase marcianas de tão inacreditáveis e que impõem uma distância que atenua o impacto da desgraça. O que os olhos não vêem ao vivo o coração não sente. E se o coração sente, o egoísmo prevalece na bolsa de valores atuais.
Também, essas crianças são tão desconhecidas! Elas não têm nome, dados pessoais, gracinhas e outras peculiaridades que despertem o modo da bondade das pessoas. Não se chamam essas crianças Baby Fae, nem Danilo, nem Luciana. Não fazem parte de campanhas para doação de órgãos nem necessitam dos avanços da medicina em cirurgias de alta tecnologia e sofisticação.
Só precisam de comida.
Impossível que não o consigam, não é mesmo?
E não conseguem sequer um pedaço de pão, esses milhões de criancinhas com suas fomes anônimas!
Essas crianças com fome, que deixam filmar ou fotografar seus olhos opacos, a pele transparente, ossos salientes e membros atrofiados, conseguiram a façanha de desaprender a comer. Jamais tive notícia de que um animal, de qualquer espécie, desaprendesse o ato de comer. Não se trata de greve de fome. Apenas falta de hábito, total carência de alimento (essa coisa que, para muitos, é lixo a ser processado e, para outros tantos, excesso, abundância, prazer, fastio e até obesidade).
Essas crianças, meus caros, não sabem mais comer porque a justiça e a compaixão não freqüentam a roda miserável.
Mas essas crianças existem, no Brasil e no mundo, existem morrendo, refugiadas de nós.
Embora numericamente perdidas nas estatísticas frias elaboradas pelos governos, cada uma delas é uma criança e cada criança tem a sua fome. Uma fome desumana e permitida, geograficamente distante dos interesses políticos, econômicos e sociais dos governos e das sociedades.
Porque o verdadeiro dilema da fome imposta a esses milhões de seres humanos está entre matar ou deixar morrer, não é verdade?
O sujeito desfilava seu jeito moleque pela festa, apesar de seus quarenta e tantos anos. Havia sido convidado por um amigo de uma amiga da filha de um próspero empresário de Brasília, daqueles que começaram vendendo medalhinhas de São Jorge na Cidade Livre.
Meio deslocado, pois não conhecia nenhum dos presentes, o fulano apreciava a comemoração, sem saber exatamente de quê ou quem, através do seu ângulo preferido, ou seja, o etílico. O cidadão era etilista(?) convicto e homem de poucos maus hábitos.
Passadas quase duas horas desde que chegara à mansão, a festa tendia mais para o lado ingênuo. O moço observava cinicamente as indumentárias dos convidados, que mantinham-se estoicamente em seus devidos lugares quando, ao dar um passo em falso, esbarrou em uma mulher loura. Encarou a figura, conferiu-lhe a feminilidade e imaginou um tête-a-tête que poderia lhe render algo mais para sua auto-estima.
– Desculpe. É que está muito cheio, tropecei...
A loura sorriu e assumiu a responsabilidade. O moço levou-a para um canto mais sossegado enquanto garantia a conversa. Alguns minutos de interrogatório e a loura, carioca da gema, recém-chegada às terras candangas, despejou sobre o desconhecido queixas e queixumes:
“Que cidade estranha, que vazio... Sinto falta de gente, sabe? De esquinas, de calor humano. O pior em Brasília é não ter mar. Ah, como sinto falta do mar, de um pedacinho de praia, tipo aquele em frente ao Sol de Ipanema, sabe qual é? E o chope então? Nem se fala... Como vou agüentar viver aqui?”
O cavalheiro sugeriu algo, mas a loura indignou-se. E do alto de sua superioridade legitimamente bronzeada, exclamou:
"Freqüentar clubes, eu? Imagine! Acho piscina uma pobreza, me lembra saneamento básico, saúde pública. Eu curto mesmo é o mar, que tem um astral especial, energia, ecologia. Ah, se eu soubesse que ia ficar sem mar não teria vindo parar aqui! Só por causa de um cargo, de um salário, um apartamento funcional Não sei como as pessoas agüentam, não sei..."
O homem, embriagado de charme, ainda tentou contra-argumentar informando-a sobre a beleza da cidade, o céu de horizontes largos, a qualidade de vida e ainda dos benefícios da ponte aérea, dos macetes dos feriados, das mordomias etc. Mas a loura estava mesmo indignada com a ausência do mar na vida brasiliense. E o tal fulano, que na bebida recuperava grande parte de sua originalidade, engrossou discretamente a voz e, amparado em seu diploma legal de aspone, falou:
- Minha querida, infelizmente vou ter que lhe dar uma aulinha básica de geografia, matéria esta que vem sendo ensinada há séculos até para criancinhas de tenra idade. Portanto, preste atenção: Brasília, capital da República Federativa do Brasil, está situada no Distrito Federal. Este que, vulgarmente apelidamos de “DF”, é limitado pelos paralelos 15º 30ºS pelos cursos dos rios Preto e Descoberto. Esse "DF" está todinho envolvido pelo Estado de Goiás, menos no ângulo Sudeste, onde faz limite sabe com que Estado? Com Minas Gerais. Brasília está construída sobre o planalto central, cuja altitude média é de 1.100m. Sabe o que isto significa? Que estamos todos nós aqui, inclusive você eu, a mil e cem metros acima do nível do mar. Ou seja, estamos em pleno mato, sacou?
Um belo gole e continuou:
– Tal situação está configurada, quer você queira ou não, em todos os mapas, nacionais e internacionais, plastificados ou não, inclusive naqueles que foram feitos antes da segunda guerra mundial, quando não existia Brasília, mas já existia mar. E não só o seu mar do Rio de Janeiro, mas todos os outros mares estão exatamente nos mesmo lugares há milênios. Até o Mar Morto continua vivo! Por que a senhora não consultou um mapa antes de vir para Brasília?
A loura piscou. Ou pestanejou. E o moço prosseguiu, bebadamente, mas sem dó nem piedade.
– Mas vou lhe contar uma coisa, minha senhora. Ou senhorita? Mesmo depois de tudo o que lhe contei, não significa que Brasília não poderá vir a ter um mar. Terá sim, isso eu posso prever.
A loura esboçou um leve sorriso.
– Pois a senhora não sabe que a miséria está chegando perto do nosso lago? E que o povo miserável tem muito por que chorar? Ou a senhora desconhece também esta matéria? Tenha, pois, um pouco de paciência. Brasília ainda terá o seu mar, mesmo que seja de lágrimas.
E lá se foi o fulano de tal em direção ao bar, completamente bêbado mas muito bem situado geograficamente.
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